sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Diário de Copenhaga: Hoje reclamamos o poder


Clique para ampliar. Na rua, forma-se a Assembleia dos Povos. Foto Ricardo Coelho Dia 9 – A cimeira da ONU torna-se cada vez mais anti-democrática. Artigo de Ricardo Coelho, em Copenhaga.

De manhã, bem cedo, juntamo-nos na estação de comboio mais próxima do Bella Center, onde decorre a cimeira climática. Hoje era o dia de “Reclamar o poder!”, uma acção para trazer para dentro da cimeira as vozes das populações. A ideia é invadir o local, realizando lá dentro uma assembleia dos povos.

Quatro grupos são formados. O grupo azul, no qual me encontro, realizará uma marcha legalizada, tentando depois superar as barreiras. O grupo verde parte de outro local e tentará penetrar no Bella, separando-se em grupos. O grupo amarelo é composto por representantes de ONG's ecologistas e de indígenas acreditados na cimeira, que sairão do local para se juntar à manifestação.

Uma marcha com 4 mil manifestantes percorre as ruas. Todos os cuidados são tidos para evitar que a polícia divida a manifestação ou prenda alguém isoladamente. As pessoas formam cadeias humanas apertando os braços e a marcha toma a forma de um quadrilátero compacto.

A marcha decorre com a alegria que já se tornou usual por aqui e uma vez mais temos uma festa com rave e samba nas ruas. Um grupo vestido com roupas de gala e levando nas mãos champanhe e bandejas de prata com uvas monta uma manifestação de ricos, com slogans como “nós amamos o capitalismo verde” ou “parem de se queixar”. Outro grupo, o Exército de Palhaços Rebelde, caricaturizava a polícia nas suas poses de autoridade.
Quando chegamos à entrada do Bella Center a massa humana começa a ser cercada. Filas de polícias tentam penetrar mas são escorraçados com a força dos nossos corpos. Ninguém se deixa intimidar pelas ameaças e ninguém responde com qualquer tipo de violência. Quando um energúmeno tenta agredir a polícia com um pau de bandeira, automaticamente é afastado e o pau é retirado das suas mãos. Os manifestantes gritam “nós somos pacíficos, que são vocês?”, enquanto reforçam a barreira humana que obriga a polícia a recuar progressivamente.

Há dois aspectos que devo reforçar aqui, dado o impacto que tiveram em mim. O primeiro é o total controlo da multidão, no sentido de assegurar que nem um polícia é agredido, nem uma pedra é atirada, nem uma janela é partida, tudo de acordo com os princípios pacifistas da acção. O segundo é a capacidade que as pessoas que me rodeiam demonstram para encontrar formas de acalmar os ânimos, recorrendo a canções e ao humor. Num momento em que receava uma carga policial, uma manifestante perguntava a um polícia qual o caminho para o Bella Center. O ridículo da situação fez-nos rir e aliviou o stress.

Quando vimos que não íamos conseguir entrar, a multidão recuou um pouco. Isto deu-me oportunidade para me afastar para tirar fotos, o que me pode ter salvo de ser detido. No momento em que me afastei, reforços policiais chegam de todos os lados e carrinhas blindadas empurram os manifestantes. Uma barreira de bicicletas é montada mas não dura muito tempo. A polícia começa a carregar nos manifestantes e alguns são detidos.
Enquanto decorria esta marcha, vários grupos de activistas tentavam entrar na cimeira de várias direcções. Nenhum conseguiu entrar, dado que a polícia respondeu com gás lacrimogéneo, gás pimenta e bastonadas (ver vídeo da CNN). Ao todo, cerca de 230 pessoas foram detidas.

A habitual repressão policial não impediu a realização da Assembleia dos Povos. Ocupando a rua e recusando as ordens para a dispersão, os activistas juntam-se num grande círculo e alguns representantes de movimentos de trabalhadores, ecologistas, de indígenas e de agricultores discursam. Segue-se uma interessante experiência de democracia participativa.

O grupo separa-se em vários grupos mais pequenos, cada qual com a tarefa de encontrar alguns pontos que acham que deveriam estar em cima das mesas de negociações. Temos uma discussão breve, mas interessante e produtiva, em que cada qual expressa as suas ideias e os outros podem mostrar a sua aprovação abanando as mãos. De cada grupo sai um conjunto de ideias, que são compiladas.

As decisões da assembleia andam todas em torno do aprofundamento da democracia. Defendemos soluções para as alterações climáticas baseadas na participação das comunidades, maior justiça na distribuição de recursos, separação entre necessidades reais e consumos supérfluos, participação popular na produção, reconciliação do conhecimento tradicional com conhecimento científico e a união de todos os grupos políticos (verdes, vermelhos e negros) na construção da alternativa.

A imprensa noticia também que Tadzio Müeller continua preso e que será julgado em tribunal pela ridícula acusação de instigação à violência. Recomendo vivamente o visionamento da sua entrevista ao Guardian, numa reportagem que mostra também a excelente intervenção que fez no Klima Forum.

Os acontecimentos dentro da cimeira apenas demonstram a pertinência deste protesto. Algumas ONG's foram impedidas de entrar na cimeira de manhã, enquanto outras foram expulsas depois de centenas de representantes se terem manifestado nos corredores e saído para tentar juntar-se à manifestação. Não tendo conseguido atravessar o forte cordão policial e tendo sofrido agressões por parte da polícia, os representantes da sociedade civil tentaram voltar para o Bella Center, para descobrirem que já não eram bem-vindos lá. Fica a lição: a dissidência não é tolerada nas cimeiras internacionais.

Entretanto, Evo Morales e Hugo Chavez incendiavam a plateia. Morales defendeu a limitação do aumento da temperatura global em 1 oC, o mais ambicioso apelo feito na cimeira. O presidente da Bolívia defendeu também que o Norte deve compensar o Sul pelos danos causados pelas alterações climáticas e que deve ser criado um tribunal internacional para os crimes contra o clima.

Morales argumentou ainda que o sistema capitalista está na base das alterações climáticas e que devemos superar este sistema para salvar a terra. Chavez reforçou esta conclusão, afirmando que se não lutarmos contra o capitalismo então a humanidade irá desaparecer. Segundo o presidente da Venezuela, se o clima fosse um banco já teria sido salvo.

Discursos muito distantes da hipocrisia de Al Gore, que se apresenta na cimeira como um herói depois de ter conseguido transformar o Protocolo de Quioto num instrumento para a criação de novos mercados especulativos. As grandes ONG's não fazem eco destes discursos, mencionando apenas os apelos à sobrevivência do Tuvalu e das Maldivas. É pena, teriam muito para aprender com as comunidades do Sul que estão a construir modos de vida ecológicos e igualitários.

Depois da manifestação, consigo ainda apanhar o lançamento do livro “Upsetting the offset: the political economy of carbon trading” na Copenhagen Business School. Este livro conta com a participação de vários académicos e activistas e apresenta poderosas críticas contra o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Pode ser descarregado gratuitamente no site da MayFlyBooks.

À noite, no Fórum pelo Clima, o WALHI – Friends of the Earth Indonesia apresenta um filme sobre o impacto destrutivo das monoculturas de palma na Indonésia. Estas monoculturas têm vindo a expandir-se rapidamente, ocupando áreas de floresta tropical e causando dramas ambientais e humanos imensuráveis.

A procura por óleo de palma tem vindo a aumentar exponencialmente, dado que é uma gordura barata que pode ser incorporada nos mais diversos produtos alimentares. Os objectivos de incorporação de biocombustíveis na União Europeia apenas servem para agravar esta tendência. A semente de palma é também usada no fabrico de rações baratas para vacas e porcos.

Os activistas do WALHI acabam por defender o abandono da promoção de biocombustíveis e o fim da importação de produtos à base de palma da Indonésia e da Malásia, sem manifestar qualquer simpatia por esquemas de certificação que apenas servem para enganar os consumidores.

Sem comentários:

Enviar um comentário