segunda-feira, 18 de junho de 2012

PROMISCUIDADE NA SAÚDE

Ouvem-se muitas vezes referências à promiscuidade público-privado em vários sectores da sociedade portuguesa. O da saúde é um deles e é muito importante que seja denunciado com exemplos concretos para que a população em geral saiba, ao votar em eleições, quem favorece as negociatas com a saúde, à custa do dinheiro dos contribuintes e dos nossos direitos.

A problemática levantada no texto seguinte que transcrevemos do “Diário de Coimbra” (10/6/2012) é da autoria do médico Carlos Ramalheira e pensamos que pode ter a ver com uma situação a que já fizemos referência neste blog, denunciada pelo BE através do deputado João Semedo na AR. O texto é um tanto longo mas constitui um documento importante e a sua leitura vale bem os minutos gastos nela.


Verdades inconvenientes

Porque será que ninguém quer dizer que o Rei vai nu? Serei só eu a achar que estão a ser ultrapassados todos os limites da razoabilidade e que grassa uma grande barafunda no campo da saúde nacional, e coimbrã em particular.

Como pode alguém ser, durante a manhã um zeloso funcionário do Estado, director de serviço, ou coordenador de uma equipa e, pela tarde, trabalhar na porta ao lado para uma entidade empresarial privada de saúde, a que se encontra hierarquicamente sujeito, também como director, director clínico ou coordenador de serviços?

Isto é legal? Não me parece, mas até dou de barato que sim. Porquê? Porque me parece mais importante sublinhar que ninguém com um mínimo de senso se atreverá a defender que tais trapalhadas sejam admissíveis, ou eticamente aceitáveis. Porque me parece mais importante constatar que quem de direito ou empurra com a barriga ou tem virado a cara para o lado, fingindo que nada se passa. Senão vejamos:

Como pode um coordenador de uma unidade funcional de um serviço hospitalar privado, e apresentando-se publicamente nessa qualidade, tecer em entrevista incompetentíssimas declarações sobre o que deveria ser uma reforma dos serviços públicos na sua área de especialidade? Não há conflito de interesses? Até que ponto, as soluções que agora defende, são vantajosas para a nóvel instituição privada?

O que terá a ver o amor subitamente manifestado pela redução as camas públicas com o facto de o tal coordenador trabalhar também para a unidade de saúde privada na porta ao lado? Serão desinteressadas estas posições, nunca antes assumidas? Afinal trabalha-se para quem? E, é caso para perguntar ainda, será que quem assim fala também tem responsabilidades na planificação ou execução de políticas de saúde? Aí o caso até assumiria outros contornos.

Como podem um coordenador e colaboradores de uma unidade funcional de um serviço público organizar uma reunião científica desse mesmo serviço nas instalações do hospital privado na porta ao lado?

Será que tiveram autorização expressa do seu director de serviço ou da direcção do seu hospital público? Será que o hospital em que trabalham não tem instalações à altura para aí realizar, como de costume, a dita reunião? Estarão todos distraídos, ou não quiseram acolher o simpósio? Será que este hospital público não precisa dos rendimentos, por vezes muito vultuosos, que a indústria de reuniões científicas proporciona? Será este o exemplo da tão propalada “complementaridade” público-privado?

Mais ainda, como podem endereçar-se convites para o congresso da unidade hospitalar privada, inaugurada ainda antes de ter licença de funcionamento, em que o nome do serviço do hospital público da mesma cidade, através de uma das suas unidades funcionais consta como organizador?

Como pode, por exemplo, anunciar-se o “apoio científico” e, ao mesmo tempo, usar-se sem licença o logótipo de uma entidade de direito público como a Ordem dos Médicos? Procedimentos típicos de uma qualquer república das bananas. Alguém tem de responder a estas e muitas outras questões.

Ironia do destino: a reunião acima referida realiza-se num auditório a que foi atribuído, e em muito boa hora, o nome de um dos mais notáveis mestres de Coimbra, um homem probo e superior, o Prof. Doutor Henrique Vilaça Ramos, conhecido, além de tudo o mais em todo o país, por ter sido praticamente o único que, há muitos anos, confrontado com um dilema moral de conciliação da sua actividade pública e privada decidiu, corajosa e honradamente, desvincular-se do serviço público que então dirigia. Exemplos assim são, infelizmente, cada vez mais raros.

Sintomaticamente, no momento em que a mesma unidade privada foi inaugurada, o seu director clínico manifestou o desejo de aceder ao programa CIGIC de recuperação de listas de espera cirúrgicas. Estou inteiramente disponível para aceitar que sim, que essa unidade, depois de licenciada, até poderá ajudar nesse âmbito, como qualquer outra. Cumpre contudo assegurar primeiro que jamais serão permitidas situações em que quaisquer agentes menos sérios, mas com poder efectivo, possam contribuir para uma menor rentabilidade, eventualmente pelos mesmos fomentada no sector público, redunde em rendimentos ilegítimos para o sector privado.

Ora, a coincidência de ver numerosos directores e coordenadores de equipas de serviços públicos a assumirem idênticas funções em hospitais privados com dimensão significativa é de molde a deixar qualquer um muito apreensivo quanto ao que se está a desenhar no campo da saúde. Neste domínio, e como as coisas estão, não basta ser sério: há incompatibilidade e situações que gente de bem (e sei que na sua maioria muitos dos envolvidos até o são) nunca poderá aceitar.

Estarão neste ponto alguns dos meus leitores a pensar que algo me move contra a iniciativa privada ou contra o surgimento de unidades privadas de saúde como a Unidade Hospitalar de Coimbra-IdealMed, ou qualquer outra. Se assim é, fiquem sabendo que estão enganados. Creio que m sector privado de saúde a funcionar bem, e que uma cooperação ou até concorrência saudáveis podem ser factores poderosíssimos para estimular o progresso de uns e outros, beneficiando igualmente os doentes.

Considero, contudo, que há diferença óbvias de escala, bem como qualitativas, entra a prática liberal tradicional e o trabalho dependente prestado em estruturas empresariais de dimensão e poder económico quase ilimitado como as que estão a surgir em Portugal como cogumelos. Penso, finalmente, que a indefinição de regras no que respeita ao exercício profissional entre sectores cria uma inaceitável promiscuidade, gera condições para que se parasite o Estado, agrava as desigualdades no acesso a cuidados de saúde e prejudica gravemente a qualidade da assistência prestada.

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