domingo, 16 de setembro de 2012

ACTUALIDADE DO EVANGELHO

Independentemente da autenticidade do evangelho para os não crentes (e não só) muitos dos textos que o compõem, são de uma impressionante actualidade sem que necessitem de uma interpretação especial. Está lá tudo de forma bem clara, de que são exemplos a denúncia das desigualdades sociais, as situações de injustiça na distribuição da riqueza ou os abusos cometidos pelos poderosos. Infelizmente, a Igreja Católica, ao colocar-se, muitas vezes, ao lado destes, acabou por trair os mais fracos, deturpando o verdadeiro sentido dos textos contidos no evangelho.

O texto que a seguir apresentamos – da autoria de um membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz de Coimbra – pode-se aplicar aos tempos que correm.


As regras áureas (*)

Há tempos a senhora Merkel pressionava para que houvesse uma regra de ouro para impedir défices excessivos, tornando inconstitucional a ultrapassagem dos 3%. Perante várias reacções negativas, o debate amornou. Mas, na Festa do Pontal, Passos Coelho voltou a referir-se à ideia. Não sei se vai haver novo debate, mas gostaria de propor uma regra de ouro alternativa.

Mesmo muitos não crentes conhecerão a parábola dos “trabalhadores da vinha”, contada por Jesus. Ela é uma denúncia corrosiva também do actual sistema de organização social e da mentalidade que enforma a actuação de muitos de nós. E ironicamente contém em si a solução para a actual crise. Quiséssemos nós pô-la em prática.

A parábola resume-se em duas palavras. O proprietário de uma vinha passa, às nove da manhã pela praça, e contrata todos os que lá estão, propondo-lhes um denário de salário. Ao meio-dia, volta à praça e contrata os que encontra, dizendo-lhes que pagará o que for justo. Repete as idas à praça, levando os trabalhadores que, entretanto, se foram juntando. No fim do dia chama os últimos e paga-lhes um denário, o que enche de satisfação os que foram contratados mais cedo. Mas, para sua grande surpresa, este patrão paga um denário a todos. Quando o criticam, apenas responde que cumpriu o que estipulara. Uma nota informativa: um denário era considerado a quantidade mínima diária para se viver com dignidade.

Quase todos nós consideraremos este patrão injusto, pois vai contra os nossos padrões mercantilistas e a nossa insensibilidade à solidariedade como estilo de vida. Mas olhemos com mais pormenor. Este patrão actuou, tendo como prioridade máxima a centralidade da pessoa. O que se traduziu em duas atitudes que hoje as sociedades não têm nem querem ter e que são indispensáveis para superar esta e outras crises.

Primeira: procurou arranjar trabalho para todos. Por isso foi passando ao longo do dia pela praça. Hoje o desemprego é apenas uma preocupação pouco mais que teórica da sociedade e dos seus dirigentes, mas que João Paulo II denunciou como eticamente ilegítimo: “A obrigação de ganhar o pão com o suor do próprio rosto supõe, ao mesmo tempo, um direito. Uma sociedade onde este direito seja sistematicamente negado, onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançarem níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social” (Centesimus annus (CA), 48).

Pagou a cada um, independentemente do tempo de trabalho, o que lhe era indispensável para poder viver segundo o padrão de dignidade como pessoa e como cidadão. E aqui tocamos num ponto chave. É que cada pessoa, independentemente dos seus talentos e da sua produtividade material, tem direito aos bens e dons da Terra, que são para uso de todos “sem excluir nem privilegiar ninguém” (CA 31). Nenhum de nós é dono do que é “seu”; é apenas administrador dos bens que são de todos, como afirmam os “Padres da Igreja”. Por isso, o Concílio Vaticano II escandalizou alguns cristãos (alguns, porque os outros nem o leram!), ao afirmar que “aquele que se encontra em extrema necessidade tem o direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessita (Gaudium et Spes (GS), 69). Podemos aplicar a mesma questão às nações: foi mérito dos alemães terem a zona do Ruhr ou dos noruegueses possuírem lençóis de petróleo? Não são estes bens de todos, dos quais alemães e noruegueses são apenas administradores?

Perante tudo o que acabei de referir, não seria mais justo, em vez da regra de ouro orçamental de Merkel, uma outra regra de ouro constitucional, a obrigatoriedade de cada cidadão ter sempre garantido o mínimo para viver com dignidade?

Para isso, a prioridade não deve estar no denário, mas na pessoa, que para viver deve ter acesso a esse denário. O obstáculo não é o dinheiro, porque, para que todos tivessem esse mínimo, bastaria decerto uma percentagem irrisória do PIB. O problema está na cabeça e nos egoísmos nacionais e pessoais, para quem o outro – pessoa, cidadão, nação – nada conta.

Seja ou não utópico, é a isto que obriga considerar a pessoa, cada um e todos, como “o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais” (GS, 25). Sem isto, os sistemas financeiros, económicos, políticos são geradores de injustiças e de violações dos direitos humanos.

(*) José Dias da Silva, Diário de Coimbra, 16/9/2012

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