sábado, 1 de setembro de 2012

QUALIDADE E BOÇALIDADE

A destruição do serviço público de rádio e televisão que está a ser preparada pelo Governo Passos/Portas está a levantar uma onda de indignação em vários sectores da sociedade portuguesa. Muitas personalidades se vêm pronunciando contra a possibilidade real de a RTP e RDP e todo o seu vasto arquivo virem a cair nas mãos de governos estrangeiros, em especial, de alguns, cujo apego à democracia e à liberdade de expressão é muito reduzido. Embora esta vertente seja importantíssima, não é sobre ela que hoje se pronuncia no “Público” Adelino Gomes, um conhecido e respeitado jornalista da rádio e da televisão. No artigo que apresenta faz a comparação entre a “noção de serviço e de interesse público na área dos média e boçalidade cultural e cívica”. Também aqui muita coisa está em jogo.
O texto é um pouco comprido mas vale bem a pena ser lido.

Deserto televisivo, o plano Relvas/Borges e um desafio à cidadania

Em 1961, Newton Minow fazia o seu primeiro discurso como presidente da FCC (Federal Communications Commission, uma espécie de ERC muito avant la lettre). Tinha 36 anos e nenhuma experiência no mundo dos novos média, que nessa altura se chamavam rádio e sobretudo televisão. A força política de quem sugerira o seu nome e de quem o nomeara (Bob e John Kennedy, por esta ordem) transmitiram-lhe, porém, a inspiração suficiente para desafiar o poderoso lobby de que ia ser, agora, o regulador: "Convido cada um de vós a sentar-se diante do televisor com a programação da vossa estação e permanecer assim durante um dia, sem um livro, sem uma revista, sem um jornal, sem a folha das despesas e das receitas ou dos índices de audiência para vos distrair. Fiquem com os olhos colados ao ecrã até a emissão fechar. Asseguro-vos que verão um vasto deserto [de lixo, começou por escrever, para depois cortar, segundo confessou mais tarde]."

Não ficou por aqui. Adiantou-lhes o que eles veriam: "Verão um desfile de concursos, programas de humor sempre iguais sobre famílias absolutamente inverosímeis, sangue e ruído, caos, violência, sadismo, crime, filmes de cowboys maus e de cowboys bons, detectives privados, gângsteres, mais violência e desenhos animados. E um nunca mais acabar de publicidade - muita dela gritada, enganosa e ofensiva. E a maior parte, chata."

Rematou, sempre desafiador: "Há alguém nesta sala que ache que a rádio e a televisão não são capazes de fazer melhor?"

"The vast wasteland" entrou no léxico norte-americano como metáfora condenatória do lixo mediático em geral e do televisivo em particular. O discurso figura entre os 100 melhores da história dos EUA. Em 2011, o autor foi homenageado por docentes, jornalistas e críticos de média na Faculdade de Direito de Harvard (um antro de esquerdistas, como se sabe...).

Esta exigência reguladora visava, pois, estações de televisão e de rádio comerciais. Apenas em finais de 1960 se estabeleceu oficialmente naquele país um sistema público no sector. A NPR e a PBS (as entidades em torno das quais se desenvolve a produção e emissão em cadeia de programas de rádio e de televisão não comerciais e sem fins lucrativos) só abusivamente, contudo, poderão ser comparadas com o modelo de serviço público em funcionamento na Europa - onde, aliás, a defesa do serviço público atravessa transversalmente governos e partidos que se vêm sucedendo no poder, em contraste com a hostilidade que desperta em importantes extractos da população norte-americana, identificados com a direita da direita republicana.

Pois bem, estive a contabilizar: Minow, perante os patrões da televisão e da rádio comerciais, empregou 15 vezes a expressão "interesse público", cinco vezes "serviço público" e polvilhou os 30 mil caracteres do seu discurso de palavras como "liberdade", "qualidade", "excelência", "arte", "criatividade", "ousadia", "imaginação".

Nos últimos dias, em entrevistas, declarações, esclarecimentos, nunca li ou ouvi, de António Borges, do gabinete de Miguel Relvas ou de altos responsáveis da coligação governamental, qualquer alusão à necessidade de garantir aos portugueses, em troca da taxa que vão continuar a pagar, um serviço público com mais qualidade e com maior independência do que aquele que a RTP lhes tem vindo a oferecer.

Mas não ouvi nem li tudo. Por isso, fui às fontes. O programa eleitoral do PSD (uma página e pouco) e o do Governo (pouco mais de meia página) para a Comunicação Social prometem "mudança", usam palavras como "mercado", "alienação", "custos", "privatização", "concorrência", "consumidores", "contribuintes". Nem uma vez se encontrarão ali palavras como as que citei de Minow - qualidade, criatividade, ousadia, imaginação. Nada também sobre "interesse público". Quanto a "serviço público", sim, prometem "um novo conceito". Não o definem, porém.

Ou talvez sim, indirectamente, quando dizem que ele será "essencialmente" assegurado na RTPI e na RTP África, bem como na "administração e gestão do acervo de memória".

Dêmos um salto, de novo, aos EUA de hoje. "A PBS e as estações que dela fazem parte são a maior sala de aulas da América, o maior palco da nação para as artes e a mais credível janela para o mundo. (...) A sua missão é criar conteúdos que eduquem, informem e inspirem", lê-se nos respectivos sites.

Se os sinais que estes dois tipos de discurso indiciam querem dizer alguma coisa (1), penso que será legítimo sustentar que o neandertal cenário para que Relvas e Borges se inclinam prefigura um ataque sem precedentes à televisão e à rádio de qualidade em Portugal. A ir para a frente a medida, seria bom que jornalistas, artistas, docentes, homens da cultura, cidadãos em geral e eventualmente organizações da sociedade civil concorressem também à concessão. Com um projecto visando qualidade e excelência, ao serviço do interesse público. Uma forma de o Governo demonstrar a seriedade do processo seria colocar como termos de referência da concessão as grandes linhas do actual contrato, assinado entre o Estado e a RTP (mas para o fazer cumprir - algo que, lamento, a RTP e a sempre esquecida RDP nem sempre foram levadas a fazer).

Se isto se revelar ideologicamente muito agressivo para a actual liderança do PSD e seus compagnons de route mediáticos, por mim ficarei muito honrado se o país adoptar o discurso-programa de Newton Minow, em 9 de Maio de 1961, em Washington. Deixo aqui o link (2), em intenção do primeiro-ministro, Passos Coelho, do Presidente da República, Cavaco Silva, e dos meus compatriotas em geral. Para que ninguém diga que não conhece a diferença entre noção de serviço e de interesse público na área dos média e boçalidade cultural e cívica.

1) Deixo de lado citações essenciais de Minow, por exemplo, sobre a importância da televisão para a formação das crianças, aspecto que tão certeiramente Maria Emília Brederode Santos apontou esta terça-feira, no PÚBLICO.

2) http://www.americanrhetoric.com/speeches/newtonminow.htm


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