domingo, 23 de junho de 2013

REVOLTA OU RESIGNAÇÃO?



As recentes revoltas que eclodiram na Turquia, mas principalmente no Brasil, deixaram muitos portugueses atónitos.

As notícias que nos chegavam do outro lado do Atlântico iam no sentido de que a presidente Dilma estava a obter sucessivas vitórias no combate à corrupção e na melhoria concreta das condições de vida de uma parte significativa dos brasileiros mais pobres, com a criação de postos de trabalho e uma melhor distribuição da riqueza. No entanto, enquanto à superfície parecia reinar a calma, no cerne da sociedade brasileira o descontentamento crescia e só faltava uma faísca para eclodir a revolta popular. Essa faísca teve lugar com o aumento das tarifas dos transportes públicos e foi o suficiente para, rapidamente, o protesto violento alastrar por todo o Brasil.

Diante desta situação, de vários quadrantes, surgiram as mais variadas tentativas de explicação do fenómeno social. Já aqui deixámos uma primeira abordagem apresentada pelo prof. Boaventura Sousa Santos numa edição do Público desta semana. Agora é a vez de transcrevermos um texto de Daniel Oliveira que podemos apreciar no Expresso de ontem onde é feito um paralelo entre a revolta na Turquia e no Brasil e o cala e consente de Portugal.


ISTAMBUL-SÃO PAULO-LISBOA

A Turquia viveu na última década o seu melhor momento económico de sempre. E com esse milagre económico, cresceu uma nova classe média, mais instruída e exigente. Apesar de ainda estar longe dos mínimos, a sociedade turca é hoje mais democrática e livre. O Brasil viveu, nos últimos vinte anos, um milagre económico. Um terço da população passou da pobreza para a classe média. Com maior autonomia financeira e cultural, mas sem recursos para aceder aos privilégios da burguesia, a classe média sempre foi a linha avançada na defesa da escola, dos serviços de saúde e dos transportes públicos. É dessa aliança que se forja com as classes sociais mais baixas, com menos capacidade reivindicativa, que dependem as democracias liberais e o Estado social. Sem classe média não sobrevivem. E sem redistribuição da riqueza não há classe média. Passada a primeira fase de recomposição social e política da Turquia e do Brasil, os governos AKP (de direita) e do PT (de esquerda) acabaram por regressar os velhos hábitos. Os rastilhos das revoltas na Turquia e no Brasil foram dois pequenos episódios: a ocupação de um jardim de Istambul por um centro comercial e o aumento das tarifas dos transportes públicos. Nos dois casos estavam em causa a qualidade de vida urbana e a defesa de bens públicos. O autoritarismo de Erdogan e as prioridades invertidas de Dilma que despeja rios de dinheiro na organização do Mundial de 2014 enquanto aumenta os transportes e abandona hospitais e escolas, indignou uma classe média com novas expectativas. Que já não se contenta com pão e circo. Nos dois casos os movimentos nasceram de forma mais ou menos inorgânica, que uma juventude mais instruída e as redes sociais permitem. Nos dois casos o poder respondeu à bastonada.

A Turquia e o Brasil vivem hoje em sociedades mais igualitárias e exigem o que há dez anos nem lhes passaria pela cabeça: jardins, passes sociais gratuitos, redistribuição da riqueza e mais democracia. Passa-se exatamente o oposto na velha Europa. Aceita-se o que há dez anos seria impensável tolerar: privatização de todos os serviços públicos, resgates a bancos com dinheiro dos contribuintes e degradação das instituições democráticas. Porque assistimos ao movimento social exatamente inverso: aumento da desigualdade e consequente definhar da classe média. A Turquia e o Brasil vivem um momento fundamental da sua história: ou dão agora o salto ou voltam para trás. A Europa vive um momento fundamental da sua história: ou trava agora a queda ou perde o que conquistou. E a chave, nos dois lados, é a classe média. Quem a trata como classe privilegiada, reservando as prestações sociais a pobres e indigentes, não percebe que está a criar o caldo social e politico para que os pobres nunca o deixem de ser. Não se trata nem em Lisboa nem em Istambul nem em São Paulo, de saber se há muito ou pouco dinheiro. Mas de como ele é distribuído. Para estádios, centros comerciais e bancos, ou para escolas, hospitais, transportes e jardins? Para uma pequena elite de milionários ou para serviços públicos que garantam à classe média e aos que a ela querem ascender os recursos que lhes dão autonomia e poder? A escolha é, como sempre foi, nossa: as revoltas de Istambul e São Paulo ou a obediência de Lisboa? Aquela que se indigna com os que, como os professores, se arriscam a resistir. E se cala perante todos os abusos e roubos.
 

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