sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A CRISE, A DÍVIDA E A CULPA



Ao longo dos últimos dias, várias personalidades públicas e jornalistas se pronunciaram sobre o momento que actualmente vivemos em Portugal e, de uma forma mais ou menos directa, apelaram à participação dos portugueses no acto eleitoral do próximo domingo, no sentido de nele manifestarem o seu veemente protesto contra as políticas terroristas de que estamos a ser vítimas. Por enquanto, as câmaras de voto ainda não são vigiadas por qualquer meio electónico e o cidadão decide a sua vontade sem qualquer constrangimento para além da sua consciência.
O texto seguinte é da autoria da socióloga e militante do PS, Ana Benavente e, por isso mesmo, tem uma força especial. Nele também está contido um apelo indirecto à necessidade de os eleitores usarem as eleições do próximo domingo para afirmarem com determinação o seu descontentamento. Não é um radical esquerdista que o escreve.
É urgente assinar a petição elaborada pela Iniciativa de Auditoria Cidadã (www.auditoriacidada.info) que exige que os serviços oficiais pagos por nós auditem a dívida pública com a participação dos cidadãos. A IAC trabalha há muito para conhecer a dívida que serve de pretexto para as políticas de destruição do nosso país e das nossas vidas, mas os limites do trabalho de um grupo de voluntários não o permitem.
A crise que vivemos é uma profunda crise sobre a concepção do mundo e das sociedades. Chegámos aqui quase sem darmos por isso. Confiando na democracia. Chegámos aqui através de profundas transformações que tornaram a pessoa num recurso chamado "capital humano".
Passarmos de pessoas a capital humano foi uma das transformações mais profundas, mais silenciosas e mais terríveis que nos trouxe ao que hoje vivemos: à pobreza que se instala na vida de muitos para que a riqueza cresça para alguns outros. A economia financeira é uma grande máquina que transforma os direitos sociais em créditos ou em dívidas. Não se luta por aumentos salariais, pede-se um crédito ao consumo. Não há direito à reforma, paga-se um seguro. Assim, a lógica actual é a da transformação de um direito individual num crédito individual.
Enquanto os direitos sociais são uma conquista colectiva da luta dos trabalhadores, hoje o endividamento está presente, individualmente, desde que se nasce e até depois da morte. Trata-se de uma nova forma de controlo social.
E não nos venham com conversas pornográficas invocando que os nossos avós eram pobres, que o país é pobre e que a emigração e a pobreza são o nosso destino. Basta de fatalismos dos mais ricos para dominação dos mais pobres. Estamos em guerra, uma guerra longa e cruel. Há maquinaria pesada em acção. As armas são a exploração do trabalho e a sua precariedade, a privação de direitos e o medo.
O medo do desemprego, o medo da doença, o medo de perder a casa, o medo da pobreza de mão estendida.
Os pobres entraram, pela acção do Governo de direita, na nossa vida pública e no quotidiano, como se de uma fatalidade natural se tratasse. A pobreza e a caridade que a consola. Os mesmos caridosos não hesitam em cortar salários e pensões e em lançar milhares de pessoas no desemprego.
O medo, manipulado como é, corrói a acção democrática, torna as pessoas obedientes e assustadas. É isso que os actuais poderes pretendem.
E a culpa? O que é terrível na culpa é que ela atribui ao medo, o maior mal que existe no mundo, um enorme direito. A culpa é subjectiva, cultural e civilizacional. A culpa sente-se. E tem um terreno fértil no catolicismo. Mea culpa, mea maxima culpa. Culpa de queremos uma vida melhor para os nossos filhos? Culpa por queremos mais educação e uma vida digna?
É interessante constatar que F. Nietzsche refere que, em alemão, uma só palavra traduz os dois conceitos, dívida e culpa. Essa palavra é Schuld.
Aprendemos muito pouco com a história. As grandes tragédias chegam com pezinhos de lã e com explicações mediáticas falsas e fatalistas. Dizia um cidadão muito rico, há alguns dias, que o rico é o que tem a política dentro da carteira. E não é?
Vivemos num país em situação de "resgate". A palavra resgate significa (dicionário) ser prisioneiro, refém ou vítima numa operação militar ou civil. Estamos portanto prisioneiros. E queremos saber de quem e porquê. Os países (todos) sempre tiveram e têm dívidas externas. O que actualmente mudou é que o capitalismo vive a fase da absoluta rapina e que os juros sobem e descem de imediato segundo os acontecimentos políticos em cada país. Transforma-se assim a finança num superpoder absoluto sobre a vida dos povos, vida que procura paralisar e dominar. A Europa dança ao mesmo ritmo. Enquanto permite que as empresas criem sociedades fictícias e se instalem onde pagam menos impostos, impede que o Banco Central Europeu empreste dinheiro directamente aos países, obrigando-o a passar pelos bancos nacionais que ficam, pelo caminho, com margens imorais de lucro.
Parece-me, e oxalá me engane, que tanto os sindicatos como os partidos políticos de esquerda estão agarrados a formas antigas de intervenção social. E nunca foi tão grande a distância entre eleitores e eleitos. Somos muitos os que não nos sentimos representados nas instituições democráticas actuais. Vivemos uma democracia formal, todos os dias um pouco mais seca, mais pobre e menos democrática.
É bom lembrar, neste momento, o que devemos àqueles com quem trabalhamos, com quem vivemos, aos mais novos, aos mais velhos e a nós próprios. Perder o sentido da humanidade levou sempre a terríveis tragédias históricas. Não o façamos nós.
"Pobre/nobre povo" acorda do teu sono, sacode as culpas com que te querem paralisar. A realidade cria-se e recria-se todos os dias. Nada está perdido.
A dívida consome uma parte cada vez maior dos nossos recursos e não pára de crescer. Porque, para pagar aos credores e fazer negócios ruinosos (BPN, por exemplo), se espolia quem sempre contribuiu para o Estado e agora se vê sacrificado e desprezado. Porque a verdadeira renda nacional vai para a área financeira privada. Porque o actual Governo age contra o seu povo.

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