domingo, 24 de novembro de 2013

GUERRA CONTRA QUEM TRABALHA OU A ESCRAVATURA DO SÉCULO XXI



Ultimamente temos vindo a assistir à “oferta” de empregos sem remuneração. Até há poucos anos, nem nos maiores pesadelos isso seria possível – uma pessoa ir trabalhar sem nada receber. Pior que a antiga escravatura já que então, pelo menos, a alimentação estava garantida, para além de um tecto para proteger das intempéries e garantir a sobrevivência dos “activos”.
O que acontece actualmente nos casos de trabalho sem remuneração é que, bem vistas as coisas, os trabalhadores pagam para trabalhar porque, entre outros gastos, têm, por exemplo, os transportes e a alimentação fora de casa. É uma situação inqualificável em pleno século XXI, num país do 1º Mundo.
Provavelmente, os casos mais comuns de trabalho não pago têm a ver com os “estágios não remunerados”, ponto de partida para o seguinte texto de João Camargo da Associação de Combate à Precariedade, transcrito do Expresso de ontem, 23/11/2013.
Após enérgica e longa luta por parte dos sindicatos e movimentos de precários durante anos, os estágios não remunerados foram finalmente ilegalizados em 2011. No entanto, como outras medidas aprovadas nos últimos anos, fechou-se a porta e abriu-se a janela, mantendo-se os estágios curriculares e os estágios de acesso a algumas Ordens.
Qual é o mal dos estágios? Mostram que as pessoas são “empreendedoras” e “proativas”, permitem ganhar experiência, reconhecimento, fazer redes de contactos. Mas não há um reverso? O que leva as pessoas a trabalhar sem receber? A falta de opções.
Num mercado de trabalho com uma pressão causada por mais de um milhão de pessoas sem emprego e um desemprego oficial de 36,5% entre os jovens, quais são os efeitos da aceitação de “trabalhar para a experiência”? Neste momento de crise os jovens são coagidos a contribuir para a redução dos salários e para o aumento da precariedade e do desemprego, aceitando ser extorquidos em nome de futuras vantagens que estão para chegar há anos. Quem entra atualmente no mercado de trabalho recebe em média menos 11% de salário do que no ano passado. Entre os que mantêm o seu posto de trabalho, 39,4% viram o salário ser reduzido no último ano, segundo o Boletim de Outono do Banco de Portugal. Uma guerra contra quem trabalha, que faz com que as pessoas fujam mais do país do que quando estávamos em guerra.
Mas qual é o mal dos estágios não remunerados? As pessoas não podiam ganhar experiência, reconhecimento e fazer redes de contactos e, além disso, receberem um salário pelo trabalho que desempenham? Especialmente quando os estágios não remunerados são mesmo estágios fora da lei?
A precariedade e o desemprego são o modelo coerente e constante, imposto nas últimas décadas. Nesse modelo de sociedade, o estágio é a porta de entrada para jovens que compõe a mescla de desemprego e precariedade dominante na população ativa. O estágio é a figura de informalidade laboral e de desresponsabilização das entidades patronais logo à entrada da vida ativa, um prelúdio para o que virá. E o que virá já aí está: desemprego sem direitos ou apoios, abandono, uma vida de exclusão que cada vez mais uniformiza quem trabalha (55,5% de toda a população activa são precários ou estão desempregados). Quem lucra com isto? Para algum lado irá o produzido, o pensado, trabalhado, transformado, não se evapora. Engrossa o Coeficiente de Gini (*) que cada vez mais tende para a desigualdade e deixa cada vez mais pessoas para trás, na pobreza.
Pode uma sociedade manter-se assim? E se pensássemos numa espécie de “TSU para os lucros”? E se os movimentos de precários e sindicatos iniciassem um debate com a sociedade sobre a necessidade do custo social do desemprego e da precariedade ser paga por quem lucra com esta realidade? E se os lucros das maiores empresas pagassem o apoio a quem está no desemprego? E se a violação do nosso direito coletivo ao trabalho fosse paga por aqueles que fazem dessa violação o seu modelo de negócio? E se criássemos um milagre a sério para quem precisa?
(*) Trata-se de uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Geni, usualmente utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de rendimento.
 

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