quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A REALIDADE É MAIS FORTE


Diga-se, em abono da verdade, que a propaganda do Governo está a trabalhar bem, com muitos opinadores da sua área espalhados por toda a comunicação social. Na opinião desta gente, se não estamos à beira de um milagre económico, mesmo com a brutal sangria provocada pela criminosa austeridade a que o país foi sujeito, para lá caminhamos. Ora, o que se sabe é que a realidade é bem mais forte do que a propaganda e ainda hoje isso ficou patente na informação esmagadora que nos chegou e que já aqui fizemos referência. É apenas um exemplo com alguns pormenores significativos: na cidade de Lisboa, há mais de oito centenas e meia de sem abrigo, dos quais, mais de 30% está na rua há menos de um ano, um terço concluiu o ensino secundário, técnico ou superior e 4,6% possuem diploma universitário. Quase metade tem entre 35 e 54 anos o que quer dizer que se encontram em plena idade activa e estão sem trabalho. Além disso, a taxa real de desemprego não é aquela que nos querem impingir mas superior a 20% da população activa.
A situação no resto do país não é muito diferente e, portanto, não há qualquer razão para optimismos sejam eles de que espécie forem. A realidade é simples: o Governo, ao aplicar de forma radical as medidas da troika falhou como se pode ler no curto mas certeiro texto (*) que transcrevemos do Público de hoje.
É já óbvio que, se não acreditarmos na propaganda oficial que evoca os malabarismos do Joker do Batman, o Governo, como era previsível, ao aproveitar a boleia da troika para nos infligir uma dose de austeridade insana, falhou.
No final de 2013 não cumpriu as metas do défice e da dívida inicialmente previstas no Memorando de Entendimento. Tão-pouco tem cumprido as metas do Memorando em revisão permanente. No final de 2013, o défice não terá descido mais que 0,6 pp, ficando acima dos 5%, e a dívida pública (inferior à privada) muito acima dos 120%. E mesmo os resultados atingidos relativamente ao défice devem-se a um colossal e desigualmente repartido aumento de impostos, cortes e medidas parafiscais (a infligir de novo em 2014) e a um “perdão fiscal” irrepetível que prejudica receitas futuras. E quanto à dívida, o alargamento do perímetro do Estado, tendência de há muito previsível, não justifica tudo, bem longe disso. Basta pensar no peso crescente dos juros a pagar pela intervenção da troika. Vítor Gaspar, que não era bom em propaganda, percebeu-o a tempo e, por isso, apresentou irrevogavelmente a sua demissão. O executivo não nos preservou e a saída da crise metamorfoseou-se em sida da crise. E, com os cortes existentes na saúde, sem outra cura à vista que não seja um milagre europeu.
Os portugueses, fartos de austeridade, agarram-se hoje a qualquer sinalzinho de melhoria amplificado pelas trombetas da propaganda. Mas, infelizmente, a realidade é mais forte. O que fica da ação de quem nos executa, o executivo, é um Portugal mais pobre (a taxa de pobreza ronda já os 24%), um agravamento do desemprego e da exclusão social (com cortes no complemento solidário para idosos, no subsídio de desemprego e no rendimento social de inserção), um país mais desigual e menos coeso, um património público exaurido (vendido ao desbarato até a empresas públicas estrangeiras), são cidadãos (os que não emigraram) menos qualificados, mais velhos e mais amorfos, um Estado com as mesmas gorduras burocráticas de sempre e piores condições para criar uma estratégia de desenvolvimento sustentável (acesso ao crédito por parte das empresas dificultado, financiamento da investigação científica e tecnológica degradado, etc.). E, pior que tudo, uma democracia de cooptação de pseudo-elites, cada vez mais distante do ideal do republicano Lincoln (“um Governo do povo, pelo povo e para o povo”) e até do elitista Schumpeter.
Sem milagres, o que nos é oferecido é um futuro onde nos espera uma austeridade imposta ou induzida, derivada não só da situação da dívida pública e de um crescimento económico anémico, mas também das regras do chamado “Tratado Orçamental” e da dominação alemã sobre a União Europeia. Perante isto, seja o que aconteça quando a troika sair, o nosso futuro será, por muitos anos, independentemente do nome com que o crismem, a continuação de um verdadeiro programa “cutelar”.
 (*) A sida da crise e o programa cautelar”, António Carlos Santos

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