quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

COLONIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PELOS PARTIDOS DO PODER


A existência de “interesses partidários na base das nomeações para a administração pública” constitui uma evidência para o comum dos portugueses mas não há como uma investigação com base científica para tirar quaisquer dúvidas. Foi o que aconteceu na sequência de um trabalho de doutoramento realizado no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território (DCSPT) da Universidade de Aveiro (UA).
Este trabalho de doutoramento serviu de tema para o excelente artigo que o historiador Manuel Loff assina no Público de hoje. Embora longo é um texto que vale a pena ler.
Uma investigadora da Universidade de Aveiro, que estudou o fenómeno da Patronagem e Governos Partidários em Portugal no período 1995-2009, concluiu que “as nomeações para a cúpula da administração pública em Portugal são influenciadas por interesses partidários para recompensar serviços prestados ao partido do poder.”
Patrícia Silva documenta aquilo que já conhecíamos: que se “utilizam as nomeações” para “gabinetes ministeriais, serviços periféricos da administração pública, bem como para posições menos visíveis, mas igualmente atrativas do ponto de vista financeiro” (“cargos em embaixadas” e “na estrutura diretiva das empresas públicas”), “como uma forma de recompensa por serviços prestados anteriormente ou em antecipação aos mesmos, esperando-se que a filiação partidária ou o relacionamento pessoal com o ministro sejam centrais neste processo”. O que ocorre em Portugal é a “colonização partidária da administração pública”, um fenómeno que designa como “patronagem” e que “pode ser parte do problema em termos dos desafios da qualidade da democracia” 
É este um fenómeno novo, exclusivamente português? Corresponde apenas ao período estudado ou carateriza o sistema político português? É um fenómeno do regime democrático ou de toda a experiência histórica do Portugal contemporâneo? A resposta é relativamente fácil: não, o fenómeno é tudo menos novo, é tudo menos exclusivamente português e é intrínseco à natureza da sociedade capitalista. Em todos os países onde se abriu caminho ao Estado liberal (sempre incompletamente) representativo, a lógica da patronagem de tipo partidário instalou-se: os partidos do poder, enquanto estruturas de articulação de diferentes segmentos das elites sociais e económicas, na qual Estado e mundo dos negócios operam numa integração sistémica, organizaram-se em redes de prestação de favores entre os que vão sendo cooptados para ascender à administração central do Estado e aos lugares de topo das grandes empresas e aqueles que operam como caciques à escala local e regional. Desta forma se corrompeu sempre o princípio da neutralidade do Estado face aos atores sociais, cujos funcionários deveriam ser recrutados segundo processos rigorosos de avaliação de competências, e se privilegiou o recrutamento de apaniguados numa lógica que, usando sintomaticamente uma retórica empresarial/futebolística, quer-nos convencer que a eficácia da aplicação de políticas públicas depende da formação de equipas ideológica e socialmente homogéneas, recrutadas pela cunha. Era assim já nos governos do liberalismo oligárquico, em especial os do rotativismo (1851-1910), em que rodavam no poder dois partidos que dominavam o sistema, de composição social muito semelhante e, consequentemente, com programas políticos praticamente idênticos. Triunfavam então (e hoje também) os condes de Abranhos, balofos e ambiciosos, que Eça tão bem descreveu. As coisas só podiam piorar num regime de partido único como o salazarista: como sólida coligação dos vários segmentos dos grupos sociais dominantes, a ditadura sustentou-se e renovou-se graças a um sistema de patronagem muito eficaz, que premiava as fidelidades com lugares no Governo, na Assembleia Nacional, nas vereações municipais, e, como hoje, principalmente nas empresas e nos departamentos do Estado a partir dos quais se podia cobrar favores, num esquema de corrupção generalizada que operava com a impunidade própria das ditaduras, só muito rara e cirurgicamente reprimida para efeitos de castigo da dissidência.
A Revolução e a democracia obrigaram o Estado a assumir-se, finalmente, como agente do bem comum, democratizando as suas funções, ampliadas a políticas sociais de alcance universal na saúde, na educação, na segurança social, na justiça, que, sustentadas no recrutamento de milhares de profissionais qualificados, forçaram à introdução de um elevado grau de transparência (ainda assim, sempre incompleta) sistematicamente posta em causa pelos interesses dos chefes políticos de turno. A consolidação, desde 1976, da troika de partidos (PS, PSD e CDS) que dominam o sistema político português permitiu a gradual colonização desta nova administração pública por uma elite de políticos puramente profissionais, os boys formados nas jotas, cujo poder se reforçou com a ideologia da empresarialização do Estado: ataque a todas as formas de gestão democrática do bem público, regresso a esquemas de "coronelização 'gestionária' da ação política" (como lhe chamam os investigadores franceses Laurent Bonelli e Willy Pelletier), típicos da ditadura mas que se têm generalizado por todo os países onde se ataca o Estado de bem-estar.
Se não é nova a tensão entre o responsável político, que se diz eleitoralmente legítimo (ainda que, salvo se deputado ou vereador, nem eleito tenha sido), e o funcionário público que reivindica a sua autonomia face a estes novos profissionais da política, é hoje particularmente chocante ver como estes últimos, de formação muito duvidosa, impõem esquemas de avaliação de desempenho a que eles próprios, produto de nomeações arbitrárias, não aceitam nunca submeter-se!

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