terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

DIVIDIR PARA REINAR


As forças do mal, quando deixadas fora de controlo, são capazes de conceber as maiores ignomínias, arbitrariedades e atrocidades que a pior parte da imaginação humana pode imaginar.
Estando legalmente vedado o despedimento sem justa causa, um dos representantes da extrema-direita económica no Governo, o ministro Mota Soares, com o seu ar angelical, criou, com extrema mestria, uma fórmula quase infalível de promover a arbitrariedade total no que se refere ao despedimento de trabalhadores. Nesta área, pode-se classificar a ideia do Governo como o crime perfeito. A fórmula “avaliação individual de desempenho” é uma maldade tão bem concebida que, como afirma José Vítor Malheiros (JVM) no Público de hoje “os próprios sindicatos se sentem constrangidos na sua argumentação pela aparente tecnicidade da expressão”.
Ainda que o texto de JVM seja relativamente extenso, a análise que contém está muito bem elaborada e vale a pena ser lida com atenção.
Se fosse preciso uma prova do controlo que a extrema-direita económica exerce sobre a sociedade e de como se apoderou do debate político e impõe a sua agenda mediática, bastaria ver como um dos seus representantes, o ministro Pedro Mota Soares, pôs toda a gente a discutir a melhor maneira de despedir trabalhadores, apesar de o principal problema que afecta o país ser o desemprego.
No espaço de poucos dias, saber “despedir bem” passou a ser uma competência fulcral para as empresas portuguesas e a lacuna neste “saber” o grande problema da economia nacional.
O Governo lembrou-se assim de definir uma lista hierárquica de critérios que devem servir para escolher os trabalhadores a despedir em caso de extinção de posto de trabalho e definiu como primeiro critério a “avaliação de desempenho”.
A lista de critérios destina-se apenas a dar uma aparência de objectividade a algo que está sujeito à mais absoluta arbitrariedade. Mas é espantoso como os próprios sindicatos se sentem constrangidos na sua argumentação pela aparente tecnicidade da expressão “avaliação de desempenho”.
De facto, a “avaliação de desempenho” apenas se encontra no topo desta lista por ser algo que permite todas as arbitrariedades às organizações, por restringir direitos aos trabalhadores e por ser, de uma forma geral, um instrumento de repressão das liberdades nas empresas, ao gosto da gestão moderna. E não por se revelar uma ferramenta de gestão das organizações mais justa ou mais geradora de inovação e de eficiência.
O recurso à “avaliação individual de desempenho” standardizada serve apenas para que empresários, gestores ou capatazes possam tomar decisões de despedimento ou recompensa de trabalhadores motivadas por razões pessoais ou políticas e as possam justificar com ar inocente apontando para uma tabela Excel.
Na prática, a “avaliação individual de desempenho” serve, antes de mais, como ferramenta de divisão entre trabalhadores, tornando evidente que todos eles estão a concorrer uns com os outros e que uma diferença de umas décimas numa pontuação pode ser a diferença entre manter o emprego ou ir para a rua. Não é por acaso que esta avaliação de desempenho é sempre individual mesmo quando só faria sentido avaliar equipas: o objectivo é impedir a união de trabalhadores em torno de interesses comuns. Não é por acaso que as consultoras que realizam estas “avaliações” incentivam as empresas a criar níveis salariais tão diferenciados quanto possível. O propósito é que cada trabalhador acabe por ficar sozinho numa “classe” profissional onde não poderá encontrar solidariedades. A receita é velha: dividir para reinar.
Esta “avaliação” promove a concorrência entre trabalhadores, em vez da cooperação, a rivalidade, em vez do trabalho de equipa, a delação, em vez da partilha de informação, a dissimulação de erros, em vez da sua correcção. Não o faz por acaso. É esse o seu objectivo. Não a eficiência ou a excelência da organização.
Com o pretexto de que a seriação promove a excelência, a avaliação individual de desempenho promove a desigualdade. É por isso que só se admite determinado número de trabalhadores em cada nível. É a táctica “escolha de Sofia”: o chefe de uma secção deve criar um ranking com todos os trabalhadores da sua secção, ordenados numericamente, mesmo quando isso não faz sentido. Em vez de uma equipa, cria-se uma fila indiana que representa a cadeia alimentar em vigor.
A “avaliação” pune o absentismo em termos objectivos, o que significa que regista as faltas, mesmo quando estas são dadas por razões legítimas e legais – como uma baixa de maternidade ou a redução de horas concedidas aos trabalhadores-estudantes.
O principal problema da “avaliação individual de desempenho”, porém, é outro. É que a avaliação não faz apenas uma análise quantitativa e qualitativa do trabalho realizado (o que não seria fácil só por si), mas inclui também uma componente “comportamental”. Para ter uma boa avaliação é importante ser “positivo“ (o que significa oferecer as suas ideias mas nunca criticar as ideias do chefe), ser “construtivo” (o que significa nunca criticar as opções da organização), ser um “team player” (o que significa obedecer às instruções mais cretinas que venham de cima e não sonhar em ter qualquer tipo de actividade sindical), estar “disponível” (o que significa fazer horas extraordinárias sem compensação), “vestir a camisola” (o que significa esconder ilegalidades cometidas pela organização), etc., etc..
O que está em causa aqui não é a avaliação em si. Todos os responsáveis por organizações avaliam os seus trabalhadores. Mas fazem-no em geral aceitando as naturais diferenças entre as pessoas e sem obrigar toda a hierarquia a uma prática indigna de vigilância e delação institucionalizada e sem criar um clima de medo. O problema da “avaliação individual de desempenho” de que a direita gosta é o seu carácter impessoal e totalitário. Não os objectivos que diz pretender.

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