terça-feira, 15 de julho de 2014

CRISE, ESTADO SOCIAL E PESSOAS


Cada vez há mais pessoas em Portugal que não tem meios para pagar as contas dos serviços básicos.
O texto seguinte foi capturado à revista Actual da penúltima edição do Expresso (5/7) e gira à volta de duas ideias fundamentais: é possível fazer face à crise sem deitar a perder o Estado social de direito” e “a recuperação económica deve colocar as pessoas no seu centro”. A sua autora é Catarina de Albuquerque, Relatora Especial do Conselho de direitos Humanos das Nações Unidas e professora de Direitos Humanos no Washington College of Law, EUA.
Tendo em conta a situação que presentemente se vive em Portugal e o brutal exagero das medidas de austeridade que vão afectar, sobretudo, os mais pobres e desprotegidos, aconselha-se vivamente a leitura deste texto.
SÃO DIREITOS, ESTÚPIDO! SÃO DIREITOS
Costuma dizer-se que no amor e na guerra vale tudo. A mesma perceção prevalece junto de muitos de que também tudo vale em tempo de crise e de que a crise tudo justifica, tudo desculpa e tudo tolera. Nenhuma destas afirmações é correta — tanto do ponto de vista ético e moral como jurídico, já que os direitos humanos impõem limites (claras obrigações jurídicas) àquilo que é permitido aos Estados, em particular em período de crise, para que os direitos não sejam mutilados.
No entanto, como consequência da crise económico-financeira, bem como das medidas de combate à mesma, temos assistido a um agravamento generalizado de um conjunto de indicadores sociais — desde o aumento do desemprego ao crescimento do número de sem-abrigo e de pessoas sem meios para pagar as contas de serviços básicos (água, medicamentos, educação, saúde, alimentos).
Ainda existe uma conceção prevalecente de que os direitos sociais são para cumprir só em tempo de vacas gordas; que não são bem direitos, são benesses ou luxos que se podem dar e tirar a bel-prazer dos detentores do poder político. Este cocktail de falsas conceções sobre esses direitos — conceções essas deliberadas ou não — tem permitido alguma impunidade na adoção de medidas que constituem pura e simplesmente violações de direitos humanos.
Os direitos económicos, sociais e culturais encontram-se consagrados num tratado jurídico internacional, ao qual acederam 162 países, incluindo todos os Estados-membros da União Europeia. Este tratado afirma que os Estados têm a obrigação de realizar os direitos sociais de forma progressiva no limite máximo dos recursos disponíveis, sendo obrigatórios passos deliberados para a realização dos direitos. Mesmo em tempo de crise continua a recair sobre o Estado a obrigação de garantir a realização de, pelo menos, níveis mínimos essenciais de cada direito. Os retrocessos são à partida considerados violações dos direitos.
Quer isto dizer que toda e qualquer medida de austeridade viola automaticamente direitos humanos? A resposta é não. Contudo, as medidas de austeridade devem ser justificadas. A redução de benefícios deve atingir aqueles que estavam numa melhor posição para permitir manter níveis de acesso aos direitos aos mais vulneráveis. As medidas devem ainda ser necessárias, razoáveis, temporárias e proporcionais; devem ser não-discriminatórias e, como já se disse, o conteúdo essencial mínimo de cada direito deve ser respeitado.
Será então que as medidas de austeridade aplicadas em Portugal foram desenhadas e adotadas de forma a não violar as obrigações de direitos humanos? Ou estarão as mesmas a dar origem a violações potencialmente maciças dos mesmos? Em Portugal, entre 2009 e 2011, o número de crianças beneficiárias do abono de família desceu de 1.846.904 para 1.389.920, voltando a diminuir para 1.300.550 em 2012, o que levou à perda deste abono por mais de meio milhão de crianças. Além disso, o valor do próprio abono de família foi sendo igualmente reduzido, tendo tido um impacto em mais de um milhão de famílias. Estas medidas conduzem obviamente ao risco de agravamento da pobreza infantil — um dos indicadores onde, de acordo com o Eurostat, Portugal pior pontua ao nível europeu. Também no nosso país, as taxas moderadoras na Saúde aumentaram de 2,25 para 5 euros e de 9,60 para 20 euros (para uma consulta no centro de saúde e para uma ida à urgência do hospital, respetivamente), acréscimos superiores a 100%. De acordo com o “The Lancet”, este aumento vai levar a uma diminuição do acesso a cuidados de saúde pública. E quem pense que este decréscimo no acesso a cuidados de saúde é positivo para o reequilíbrio das contas públicas desengane-se. Ainda o “The Lancet” e a Aliança Europeia de Saúde referem que os cortes indiscriminados já estão a dar origem a um aumento das taxas de mortalidade, morbilidade e doenças contagiosas. A longo prazo, podem dar origem a dispêndios em tratamentos particularmente caros, devido à falha de diagnósticos precoces. Finalmente, os constantes aumentos na taxa do IVA de 20% para 21% em 2009, de 21% para 23% em 2011 e agora para 23,25% são um exemplo paradigmático de uma medida regressiva com maior impacto nos mais pobres. Análises feitas pelo Instituto Nacional de Estatística do Reino Unido, onde o aumento da taxa do IVA de 3% foi muito próximo do português, chegaram à conclusão de que para os 20% mais pobres o IVA representa cerca de 10% dos rendimentos, enquanto para os mais ricos representa apenas 5%. É necessário um estudo semelhante no nosso país. Apesar de aparentemente igual para todos, o que a realidade demonstra é que os agravamentos do IVA são profundamente injustos ao onerarem mais quem menos tem.
As medidas de austeridade adotadas não estão a salvaguardar os direitos daqueles que “menos podem”, levando ao acentuar das desigualdades na sociedade, violando assim o princípio da não-discriminação e ignorando os requisitos estabelecidos pela ONU para aferir se uma medida de austeridade consubstancia, ou não, uma violação de direitos humanos. Por conseguinte, é legítimo concluir que à partida estas medidas constituem violações de direitos humanos, já que afetam uma série de direitos consagrados em tratados internacionais aos quais o nosso país está vinculado e também porque as cautelas impostas não foram necessariamente adotadas. O ónus da prova de que tal não é verdade cabe ao Governo, que deverá urgentemente elaborar um estudo aprofundado sobre o impacto das medidas de austeridade nos direitos humanos de todos os que vivem em Portugal. Até lá deve prevalecer a conclusão de que estamos perante violações de direitos humanos.
Coloca-se então a questão de saber se será possível ao Estado adotar outro tipo de medidas que permitam cortar na despesa, aumentar a receita e, mesmo assim, respeitar as nossas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos. Estou convencida que sim e passo a dar algumas pistas:
Implementar políticas tributárias socialmente responsáveis. Os direitos humanos obrigam a políticas fortes de combate à evasão fiscal e transações financeiras ilícitas. No entanto, de acordo com o Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OEGF), a economia paralela aumentou para 26,7% do PIB, representando cerca de 44 mil milhões de euros (mais de metade do empréstimo pedido à troika). Para o OEGF, as medidas do Governo “têm estado mais vocacionadas para a economia informal, ou alguma economia subterrânea mais marginal [o vulgo ‘biscate’], e não tanto para a economia subterrânea mais grossa, mais qualificada e de montantes mais significativos, que tem a ver com a fraude empresarial”. Uma parte da fuga fiscal dá-se ainda através da existência de offshores autorizados, de acordos de dupla tributação e de outras operações contabilísticas — os quais beneficiam as grandes empresas e as pessoas de maiores rendimentos. Não combater plenamente a evasão fiscal equivale a prescindir de receitas indispensáveis para a realização de direitos sociais. Esta omissão resulta claramente numa violação de direitos humanos, já que o Estado está a falhar na sua obrigação de usar os recursos disponíveis para a realização daqueles direitos.
Melhorar a regulação financeira. Entre 2008 e 2011, a UE gastou 4,5 biliões de euros para salvar as suas instituições financeiras. Devem por isso ser adotadas medidas jurídicas e políticas para regular os mercados financeiros e reforçar a responsabilização e prestação de contas e transparência dos sistemas fiscais e evitar os riscos colocados por instrumentos financeiros altamente sofisticados e frequentemente pouco éticos.
Apontar os cortes para aqueles que mais têm e evitar o impacto dos mesmos nos mais vulneráveis. O exemplo da Islândia mostra-nos ser possível adotar medidas mais sensíveis, já que naquele país os 10% mais pobres sofreram uma redução de rendimentos de 9%, enquanto os mais ricos sofreram um corte de 38%. Situação inversa deu-se por exemplo na Irlanda, em que os mais pobres sofreram uma redução de 26%, enquanto os mais ricos se limitaram a um corte de 8%.
Portugal deve urgentemente pôr fim às medidas cegas e violadoras dos direitos humanos que têm vindo a ser adotadas. É possível fazer face à crise sem deitar a perder o Estado social de direito, as conquistas civilizacionais que representam os direitos humanos e sem violar compromissos jurídicos internacionais. A recuperação económica deve colocar as pessoas, os seus direitos e a melhoria da sua inclusão social e económica no seu centro, sob pena de vir a ter vida curta e ser insustentável.

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