terça-feira, 1 de julho de 2014

O PRIMADO DO DINHEIRO


Os afectos constituem a nossa maior riqueza. As pessoas existem para serem amadas e as coisas para serem usadas. A sociedade de consumo, na sua versão radical actual fomenta exactamente a atitude contrária, usar as pessoas e amar as coisas. Entre estas, a que deve ser venerada acima de tudo é o dinheiro, o que conduz a um “descalabro” na “hierarquia de valores” em qualquer sociedade tal com está a acontecer agora em Portugal.
O poder do dinheiro permite que se levem a cabo as maiores malfeitorias, com a maior das impunidades. E os detentores desse poder sabem-no muito bem quando atropelam as leis sem receio de qualquer castigo. Os direitos das pessoas em situação de fragilidade são pisados a cada momento e os exemplos abundam como aquele que é citado pelo JN de ontem em que, após o despedimento de cerca de 20 trabalhadores de uma fábrica de calçado, a administração da empresa pretende que os restantes façam mais duas horas por dia…
Enquanto se insistir no primado das coisas – em especial o dinheiro – em detrimento das pessoas, o mundo não terá sossego.
O texto seguinte é um artigo de opinião (*) muito crítico em relação à situação que se vive actualmente em Portugal e foi transcrito do Diário de Coimbra da passada sexta-feira.
As pessoas são o trabalho, a família, a saúde, a instrução, a justiça, a cultura, o lazer, a participação cívica e o mais que cada um pode acrescentar.
As coisas são apenas o que não tem vida, o que não faz sentido sem o sentido que as pessoas lhe dão.
Dentre as coisas avulta o dinheiro, como essencial ao que cada um precisa, mas como acessório o que é excesso.
Vem isto a propósito do descalabro em curso na hierarquia de valores na sociedade portuguesa. O excesso, que devia ser acessório, passa também a principal, concedendo poder na directa proporção da quantidade do excedente. Chamamos-lhe “o poder do dinheiro”.
Instalada a crise económica, os seus causadores e os gestores subsequentes exploram-na até à exaustão.
À míngua de autocrítica pelos responsáveis sobre as politicas erradas prosseguidas, enchem os cidadãos de sentimentos de culpa por associação da crise ao excesso continuado de gastos de dinheiros com o custeio do que às pessoas importa.
Mobilizam os melhores profissionais de informação e propaganda para o efeito. Fica aberto o caminho psicológico para a acrítica e desanimada aceitação do único remédio adoptado e apregoado como possível, o corte, compressão e desqualificação do que às pessoas é essencial, do que define o que as pessoas são.
De repente nada é mais o que era, como o trabalho digno e adequadamente remunerado, a importância da família, a saúde e instrução adequada para todos, ou a justiça próxima e eficaz.
A cultura e o lazer, realidade para apenas alguns, passam a miragens para os demais.
Tomado o remédio, torna-se inevitável que a prioridade seja sobreviver.
E aí emerge a coisa das coisas, o dinheiro.
Ao primado da pessoa agiganta-se o primado do dinheiro.
Aqui chegados porque já aqui chegamos, não espanta então que nestes últimos anos já tenhamos em Portugal menos nascimentos que mortes.
Quem pode ter filhos numa sociedade assim?
Alarma-se agora o Governo! Cria comissões e encomenda estudos para promover a Natalidade.
Deseja-se que perceba bem que não serão umas quantas medidas avulsas que solucionarão o problema de fundo.
Se não arrepia caminho nos cortes, compressão e desqualificação do que às pessoas é essencial, mormente no trabalho e na qualidade de vida, não chega lá.
Porque foi aquele caminho que criou as condições psicológicas para que alguns, bastantes, dos que estão na posição de pagar trabalho, exijam, em contrapartida, que as mulheres se comprometam, até por escrito, a não engravidar, sob pena de perda ou não acesso ao emprego, que trabalhem com horários mínimos, nas não máximos, que estejam permanentemente disponíveis para a mobilidade geográfica ou para a prestação de trabalho.
Ter filhos assim, como?
Se se pretende inverter a curva descendente da natalidade, então há muito a mudar, mormente na legislação laboral, pública e privada, mas em sentido contrário ao dos últimos anos.
Quem quer mudar não pode. Quem pode quer?
(*) Amaro Jorge, Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados

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