domingo, 7 de dezembro de 2014

DESIGUALDADE E ÉBOLA – CAUSA E CONSEQUÊNCIA


O texto seguinte foi transcrito do Expresso Economia e é da autoria de Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia e professor na Universidade de Columbia. Não estamos, pois, na presença de nenhum radical esquerdista mas este artigo obtém, com facilidade, a concordância da maioria das pessoas de esquerda. É óbvio que a crise do ébola tem quase tudo a ver com o facto de a saúde se ter transformado, a nível mundial, num negócio altamente lucrativo. Uma vez que “os pobres e os países pobres” não têm meios para pagar uma vacina contra aquela doença, as grandes empresas farmacêuticas não investem na sua criação. Logo que a doença ameaçou os países ricos, eis que apareceram de imediato financiamentos para a investigação…
A crise do ébola lembra-nos, uma vez mais, o lado negativo da globalização. Nem só as coisas boas – como os princípios da justiça social e da igualdade de género – atravessam fronteiras mais facilmente do que nunca; também as influências malignas, como problemas ambientais e doenças, o fazem.
A crise também nos lembra a importância do Governo e da sociedade civil. Não recorremos ao sector privado para controlar a propagação de uma doença como o ébola. Em vez disso, viramo-nos para as instituições – os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC), nos Estados Unidos, para a Organização Mundial de Saúde (OMS) e para os Médicos Sem Fronteiras, o notável grupo de médicos e enfermeiros que arriscam as suas vidas para salvar as de outros nos países pobres ao redor do mundo.
Até mesmo os fanáticos de direita que querem desmantelar as instituições governamentais recorrem a elas quando se deparam com uma crise semelhante à provocada pelo ébola.
Os governos podem não fazer um trabalho perfeito para enfrentarem essas crises, mas uma das razões para que não tenham feito o que nós esperávamos é o facto de termos subfinanciado as agências relevantes a nível nacional e global.
O episódio ébola guarda lições adicionais. Uma das razões pela qual a doença se espalhou tão rapidamente na Libéria e na Serra Leoa é que ambos são países devastados pela guerra, onde uma grande parte da população está desnutrida e o sistema de saúde foi devastado.
Além disso, onde o sector privado desempenha um papel essencial – o desenvolvimento das vacinas – há poucos incentivos para se reservarem recursos para doenças que afligem os pobres ou os países pobres. Só quando os países avançados são ameaçados é que há impulso suficiente para investir em vacinas no sentido de se enfrentar doenças como o ébola.
Isto não é tanto uma crítica ao sector privado; afinal de contas, as empresas farmacêuticas não estão no negócio por terem bom coração e não há dinheiro na prevenção ou cura das doenças dos pobres. Em vez disso, o que a crise do ébola questiona é a nossa dependência em relação ao sector privado para fazermos aquilo que os governos desempenham melhor. Na verdade, parece que com mais financiamento público, uma vacina contra o ébola já poderia ter sido desenvolvida há anos.
Os fracassos da América a este respeito têm atraído uma atenção especial – tanto que alguns países africanos estão a tratar os visitantes dos EUA com precauções especiais. Mas isso só faz eco d um problema mais fundamental: o sistema de saúde maioritariamente privado da América está a falhar.
É verdade, no topo da lista que os EUA têm alguns dos principais hospitais do mundo, universidades de investigação e centros médicos avançados. Mas, embora os EUA gastem mais per capita e como percentagem do seu PIB em cuidados médicos do que qualquer outro país, os seus resultados de saúde são realmente dececionantes.
A esperança de vida dos cidadãos americanos do sexo masculino à nascença é a pior dos 17 países com altos rendimentos – quase quatro anos a menos do que na Suíça, Austrália e Japão. E é a segunda pior para os cidadãos do sexo feminino, mais de cinco anos abaixo da esperança de vida do Japão.
Outras métricas de saúde são igualmente dececionantes, com dados a indicar resultados de saúde mais pobres para os americanos ao longo das suas vidas. E, durante pelo menos três décadas, os problemas foram ficando piores.
Muitos fatores contribuem para o desfasamento na saúde da América, com lições a tirar que também são relevantes para outros países. Para começar, o acesso a assuntos de medicina. Com os EUA entre os poucos países avançados que não reconhecem o acesso como um direito humano básico, e mais dependente do que outros do sector privado, não é surpresa para ninguém que muitos americanos não adquiram os medicamentos de que necessitam. Embora  a lei Petient Protection and Affordable Care Act (Obamacare) tenha trazido melhorias, a cobertura dos seguros de saúde continua fraca, com quase metade dos 50 estados americanos a recusar a expandir o Medicaid, o programa de financiamento de cuidados de saúde para os pobres da América.
Além disso, os EUA têm dos maiores índices de pobreza infantil entre os países avançados (que foi especialmente verdadeiro antes de as políticas de austeridade terem aumentado dramaticamente a pobreza em vários países europeus) e a falta de nutrição e cuidados de saúde na infância tem efeitos ao longo da vida.
A desigualdade desmedida na América é, também, um factor crítico no desfasamento que existe no seu sector da saúde, especialmente combinada com os factores acima mencionados. Com mais pobreza, mais pobreza infantil, mais pessoas sem acesso a cuidados de saúde, a habitações dignas e à educação, e mais pessoas a enfrentar a insegurança alimentar (muitas vezes consumindo alimentos baratos que contribuem para a obesidade), não surpreende que os resultados de saúde nos EUA sejam maus.
Mas os resultados de saúde também são piores nos EUA do que noutros lugares para aqueles que têm rendimentos mais elevados e cobertura de seguro. Talvez isto esteja, também, relacionado com uma desigualdade superior à dos outros países avançados. A saúde, sabemos, está relacionada com o stress. Aqueles que se esforçam por subir a escada do sucesso conhecem as consequências do fracasso. Nos EUA, os degraus da escada estão mais distantes do que noutros lugares e a distância entre a parte superior e a parte inferior é maior. Isso significa mais ansiedade, que se traduz em saúde mais precária.
Ter boa saúde é uma bênção. Mas como os países estruturam os seus sistemas de saúde – e as suas sociedades – faz uma diferença enorme em termos de resultados. A América e o mundo pagam um preço elevado pela excessiva dependência das forças de mercado e por uma atenção insuficiente a valores mais amplos, incluindo a igualdade e a justiça social.  

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