domingo, 31 de maio de 2015

TTIP OU OS TENTÁCULOS DO IMPERIALISMO


A União Europeia (UE) pode estar perto de assinar um acordo comercial de longo alcance com os Estados Unidos, cuja sigla TTIP foi extraída da sua designação em inglês (Transatlantic Trade and Investiment Partnership) e que em português significa “Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento”.
O que se sabe neste momento sobre esta “parceria” é que tem sido negociada secretamente ao nível da UE e sem que os parlamentos nacionais sejam consultados. Tamanho secretismo deixa muito a desejar sobre as reais intenções dos negociadores para além de constituir mais um significativo exemplo da forma como é tratada a democracia na Europa, que permitirá, neste caso, a imposição de um acordo a cada país, da forma mais absoluta.
Mais uma vez, recorremos a um texto de uma personalidade insuspeita de qualquer radicalismo, Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia (*) que nos elucida da forma como funcionam as tais “parcerias”onde os donos da Europa nos querem meter.  Apesar de longo o texto é muito esclarecedor.
Os Estados Unidos e o mundo estão envolvidos num grande debate sobre novos acordos comerciais. Estes pactos costumavam ser apelidados de “acordos de livre-comércio”; na verdade eram acordos comerciais geridos, adaptados aos interesses das grandes empresas, principalmente nos EUA e na União Europeia. Hoje, estes acordos são mais frequentemente chamados “parcerias”, como na Parceria Trans-Pacífica (PTP). Mas estas não são parcerias entre iguais: os EUA impõem efetivamente as condições. Felizmente os “parceiros” da América estão a tornar-se cada vez mais resistentes.
Não é difícil ver porquê. Estes acordos vão muito além do comércio, regulando também o investimento e a propriedade intelectual, impondo alterações fundamentais nos modelos jurídicos, judiciários e regulamentares, sem contribuições ou responsabilização por parte de instituições democráticas.
A parte talvez mais injusta, e mais desonesta, de tais acordos diz respeito à proteção dos investidores. Naturalmente, os investidores têm de ser protegidos contra a apropriação das suas propriedades por governos desonestos. Mas não é para isto que são tomadas estas provisões. Houve pouquíssimas expropriações em décadas recentes, e os investidores que queiram proteger-se podem comprar seguros da Agência Multilateral de Garantia do Investimento, uma filial do Banco Mundial, e os EUA e outros governos oferecem garantias similares. Não obstante, os EUA exigem estas provisões na PTP, mesmo quando muitos dos seus “parceiros” têm proteções de propriedade e sistemas judiciários tão bons quanto os seus.
O verdadeiro propósito destas provisões é entravar regulamentos de saúde, ambientais, de segurança, e mesmo financeiros, destinados à proteção da economia e dos cidadãos americanos. As empresas poderão processar governos exigindo uma reparação plena em função de qualquer redução nos seus lucros futuros esperados decorrente de alterações regulamentares.
Esta não é apenas uma possibilidade teórica. A Philip Morris está a processar o Uruguai e a Austrália por estes exigirem rotulagem de advertência nos cigarros. Reconhecidamente, ambos os países foram um pouco mais longe do que os EUA, tornando obrigatória a inclusão de imagens chocantes que mostrem as consequências do consumo de cigarros.
A rotulagem está a funcionar. Está a desencorajar o tabagismo. Por isso agora a Philip Morris exige ser compensada por lucros perdidos.
No futuro, se descobrirmos que qualquer outro produto causa problemas de saúde (pensem no amianto), em vez de enfrentar processos pelos custos impostos sobre nós, o fabricante poderia processar os governos que o impediram de matar mais pessoas. A mesma coisa poderia acontecer se os nossos governos impusessem regulamentos mais rigorosos para nos proteger do impacto das emissões de gases que contribuem para o efeito de estufa.
Quando presidi ao Conselho de Assuntos Económicos do Presidente Bill Clinton, os ambientalistas tentaram promulgar uma provisão similar conhecida por “exigência regulamentar” [uma exigência que obriga a compensação em caso de regulamentação governamental]. Sabiam que assim que fossem aprovados, os regulamentos seriam suspensos, simplesmente porque o governo não poderia pagar a compensação. Felizmente, fomos bem sucedidos no combata à iniciativa, tanto nos tribunais como no Congresso dos EUA.
Mas, agora, os mesmos grupos estão a tentar rodear os processos democráticos, inserindo essas provisões em legislação comercial, cujo conteúdo está a ser mantido, em grande parte, em segredo do público (mas não das grandes empresas que estão a tentar impô-los). É apenas a partir de fugas, e conversas com responsáveis governamentais que parecem mais comprometidos com o processo democrático, que sabemos o que está a acontecer.
Um poder judiciário público imparcial, com padrões legais construídos durante décadas, baseado em princípios de transparência, de precedência, e da oportunidade para recorrer de decisões desfavoráveis é fundamental para o sistema de governo americano. Tudo isto está a ser posto de parte, já que os novos acordos exigem arbitragem privada, não-transparente, e muito cara. Além disso, este acordo é frequentemente repleto de conflitos de interesse; por exemplo, os árbitros podem ser “juízes” num caso e defensores num caso relacionado com o primeiro.
Os procedimentos são tão dispendiosos que o Uruguai teve de recorrer a Michael Bloomberg e a outros americanos abastados e comprometidos com a saúde para se defender da Philip Morris. E, embora as grandes empresas possam instaurar processos, outros não podem fazê-lo. Se existir uma violação de outros compromissos, por exemplo laborais ou de normas ambientais, os cidadãos, os sindicatos e os grupos da sociedade civil não dispõem de qualquer recurso.
Se alguma vez existiu um mecanismo unilateral de resolução de disputas que viola princípios básicos, este é um deles. Foi por isso que me juntei a destacados peritos jurídicos dos EUA, incluindo de Harvard, Yale, e Berkeley, na escrita de uma carta ao Presidente Barack Obama explicando quão nocivos são estes acordos para o nosso sistema de justiça.
Os apoiantes americanos de tais acordos salientam que até agora os EUA foram processados poucas vezes, e que ainda não perderam um único caso. As grandes empresas, contudo, estão a começar a aprender estes acordos em seu proveito.
E as dispendiosas sociedades de advogados nos EUA, Europa e Japão muito provavelmente superarão os mal-remunerados advogados governamentais que tentem defender o interesse público. Pior ainda, as grandes empresas dos países avançados podem criar filiais em países-membros através das quais investem novamente nas sedes, e seguidamente processar, dando-lhes um novo canal para bloquear regulamentação.
Se houvesse uma necessidade para uma melhor proteção da propriedade, e se este mecanismo de resolução de disputas privado e dispendioso fosse superior a um sistema judicial público, deveríamos estar a mudar a lei não apenas para prósperas companhias estrangeiras, mas também os nossos próprios cidadãos e pequenas empresas. Mas não tem havido indícios de que seja este o caso.
As normas e regulamentos determinam o tipo de economia e de sociedade em que as pessoas vivem. Afetam o poder de negociação relativo, com implicações importantes sobre a desigualdade, um problema crescente em todo o mundo. A questão é se devemos permitir que as abastadas empresas usem provisões ocultas, em alegados acordos comerciais, para impor como viveremos no século XXI. Espero que os cidadãos nos EUA, na Europa, e no Pacífico respondam com um retumbante não.
(*) “A secreta tomada do poder pelas multinacionais”, Expresso Economia

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