terça-feira, 5 de maio de 2015

UMA VISÃO MÉDICA SOBRE O AUMENTO DO HORÁRIO LABORAL


É um dado adquirido que o Governo ultrapassou de forma radical as pretensões da troika em matéria de redução de direitos laborais e não irá recuar senão com muita luta dos trabalhadores. Passos e Portas montaram um colossal embuste aos portugueses tentando convencê-los que findo o suposto período de intervenção da troika, muitas das imposições desta organização terminariam e teríamos o paraíso instalado em Portugal depois de corrigidos os desmandos provenientes do facto de termos andado a viver acima das nossas possibilidades.  
Acontece que nada se alterou para melhor, antes pelo contrário temos continuado a assistir a um significativo aumento da exploração do factor trabalho através de vários artifícios, entre eles, o aumento do horário de trabalho. É este o tema de um excelente artigo de opinião de um médico psiquiatra (*) que aborda a situação sob um prisma diferente daquele que em geral estamos habituados.
O actual Governo alterou o horário de trabalho na função pública das 35 para as 40 horas semanais. Já com a troika ausente do nosso país, resiste em repor o horário anterior, alegando que este alargamento aumenta a produtividade, reduz custos (por exemplo, no pagamento das horas extraordinárias) e acaba por ser uma medida justa, já que equipara o horário de trabalho do sector público ao do sector privado.
Esta medida constitui um erro político pelas razões que passarei a expor. Em primeiro lugar, subsiste, em muitos políticos e empresários, a crença errada de que presença prolongada no local de trabalho é sinónimo de maior produtividade e compromisso laboral. Esta ideia é falsa. A produtividade cai inevitavelmente com o cansaço, pois a nossa capacidade de concentração é limitada e o nosso organismo não é propriamente uma máquina que se programa de acordo com as conveniências. Além disso, quando se insiste em prolongar demasiado as horas de trabalho, os erros aumentam e o preço a pagar na nossa saúde é elevado.
Actualmente, na nossa sociedade, vivemos um curioso paradoxo: apesar de terem sido criados inúmeros meios tecnológicos para nos facilitarem a vida, tudo parece mais difícil e o ritmo do dia-a-dia não pára de aumentar. São muitas as pessoas que se queixam de falta de tempo, pois são obrigadas a trabalhar demasiadas horas. Sei, por experiência clínica, que em muitos empregos do sector privado quem se limitar a cumprir o horário ­—­ ainda que tenha produzido convenientemente — é visto pelas chefias com um olhar crítico; como alguém que está desinteressado, não se empenha e não “veste a camisola da empresa”. De acordo com esta nova ética laboral insensata, fica mal sair do trabalho a horas. Deste modo, tem-se vindo a criar um clima de pressão insustentável para que se considere “normal” cumprir uma jornada de trabalho (maioritariamente não remunerada) que vai muitas vezes além das 50 horas semanais.
Umas das consequências de ter um horário excessivamente alargado é o aumento de risco para o burnout. Esta síndrome poderá ser definida como uma reação emocional crónica caracterizada pela desmotivação, desinteresse, e um mal-estar geral na relação com o trabalho. Nestes caso, o desejo de abandonar o emprego transforma-se num pensamento constante, a produtividade diminui e o absentismo aumenta. Com o tempo podem surgir perturbações depressivas e de ansiedade, abuso de álcool, etc. Recentemente realizámos um estudo na Faculdade de Medicina de Lisboa (ainda não publicado) e verificámos que cerca de 15% dos médicos hospitalares encontram-se em burnout. Curiosamente, um dos factores de risco associados foi precisamente o trabalho superior a 40 horas semanais.
O nosso país precisa urgentemente de tomar medidas que aumentem a natalidade. Mas isso não se faz apenas com benefícios fiscais, nem com mais um subsídio ou abono de família. Já há muito tempo que se sabe que a qualidade de vida, a produtividade e o desejo de ter filhos está associado à possibilidade de conciliar o trabalho e a família. Manter, obstinadamente, o horário de trabalho nas 40 horas semanais, seja no sector público ou no privado, e impedir uma adequada flexibilidade da jornada laboral, é uma medida antinatalidade. Sair mais cedo uma hora por dia do trabalho faz muita diferença para pais e mães, uma vez que estes andam diariamente num autêntico corrupio, perdendo várias horas nas deslocações entre o trabalho, casa, escola e actividades extracurriculares. Ora, este desgaste não se mede e, por conseguinte, não aparece nas folhas de Excel dos decisores políticos, mas está bem presente na vida do cidadão comum que se esforça arduamente por criar os seus filhos, trabalhar e pagar os seus impostos.
O trabalho excessivo pode-se tornar numa “sanguessuga”, pois vai-nos roubando o tempo, a nossa energia, a nossa saúde, os nossos amigos e a nossa família, deixando-nos isolados e mais infelizes. Há que pôr fim à idolatria das 40 horas de trabalho semanais. Considero que um país desenvolvido e produtivo tem que ter a ambição de pensar nas pessoas, oferecendo-lhes tempo para viver. Todos teríamos a ganhar se o horário de trabalho fosse reduzido e flexibilizado. Ter mais tempo para viver é ter mais possibilidades de se fazer aquilo que para nós é importante; ter mais tempo é ter mais liberdade, ganhar qualidade de vida e ter mais saúde. Talvez esta medida pudesse ajudar os portugueses a serem um povo menos envelhecido, mais feliz, e deste modo sairmos do topo da lista dos países da Europa onde se consome mais antidepressivos.
(*) Pedro Afonso, Público

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