domingo, 5 de março de 2017

PARAÍSOS DO DINHEIRO


A recente descoberta da transferência de 10 mil milhões de euros para offshores, fora de qualquer controlo fiscal, para além do monstruoso prejuízo que terá causado às finanças públicas portuguesas, veio, mais uma vez, levantar o papel dos chamados “paraísos fiscais” na fuga ao fisco. A nível global, estamos perante uma situação em que os detentores de grandes riquezas estão praticamente protegidos do pagamento de impostos, quando deviam ser os principais contribuintes. Neste aspecto, os mais prejudicados são os detentores de pequenos rendimentos, como os trabalhadores e, em geral, a classe média. É sobre estes que acaba por recair o grosso dos impostos que deveriam ser pagos pelos mais ricos.
Um outro aspecto, não menos importante, tem a ver com a utilização das offshores para a canalização de dinheiro de e para actividades criminosas e terroristas, tais como o tráfico de droga e venda de armas.
O texto seguinte (*) traz outra vez à tona, e muito a propósito, a situação da chamada Zona Franca da Madeira. Embora o artigo não refira nada de novo, é muito importante recordar os factos.
Em 2011, as estatísticas do FMI mostravam que a Holanda com 27,5 mil milhões de dólares ocupava a primeira posição do investimento direto estrangeiro que entrava em Portugal. Para baralhar as contas, os dados do FMI revelavam que o investimento português em direção à Holanda correspondia a 26,3 mil milhões de dólares. À exceção de poucos agricultores holandeses que decidiram passar a reforma esquecidos em montes alentejanos ou em moradias de luxo no Algarve, não se vislumbra investimento significativo proveniente da terra das túlipas. A explicação para este estranho dilema reside no facto de grande parte das empresas portuguesas cotadas no índice PSI-20 terem deslocalizado a sua sede para a Holanda para fugir ao fisco e fazer retornar os capitais ao país de origem onde sempre tiveram atividade efetiva.
Durante três décadas, as estatísticas convenceram a Comissão Europeia que a Zona Franca da Madeira criava milhares de postos de trabalho e era um polo de desenvolvimento que justificava a isenção do pagamento de IRC, de imposto de selo, de taxas liberatórias e de mais-valias. Mas passado algum tempo percebemos que o PIB per capita da Madeira não poderia ser superior ao registado no Grande Porto, onde está sediada a nossa indústria, e descobrimos que havia gato escondido com rabo de fora.
Dois testas-de-ferro geriam 871 empresas-fantasma na Suite 605 do offshore da Madeira e nos dados enviados para a Autoridade Tributária (AT) estas duas pessoas eram multiplicadas e contavam como centenas de trabalhadores. Percebemos que a UC Rusal, a maior produtora de alumínio, a British American Tobacco, a segunda maior tabaqueira do mundo, a Pepsi Co, a Sonangol e um total de mil empresas partilhavam uma sala de 100 metros quadrados sem terem contratado um único madeirense e sem terem atividade produtiva no Funchal. Tudo não passava de um mega esquema de batota fiscal que impediu Portugal de ter acesso a fundos comunitários para auxílio às regiões ultraperiféricas e impossibilitou que a Madeira recebesse anualmente 400 milhões de euros provenientes do Fundo de Coesão para combater a insularidade, arrastando para a pobreza mais de 30% da população do arquipélago.
Agora são as estatísticas relativas a transferências para offshores entre 2010 e 2014 que têm mais 10 mil milhões de euros do que os dados divulgados em 28 de abril de 2016, na tentativa de abafar o escândalo dos Documentos do Panamá. Dizem-nos que há 20 declarações (o chamado modelo 38) que não foram tratadas, provavelmente para encobrir alguma ligação ao escândalo do BES.
No final de abril do ano passado, o jornal PÚBLICO perguntou às Finanças se as estatísticas incluíam as transferências provenientes do offshore da Madeira e a resposta foi que “os dados estatísticos relativos ao Centro Internacional de Negócios da Madeira, bem como a identificação das entidades que ali operam, não são assim reportados pela respectiva entidade administradora à Autoridade Tributária nacional”, passando o ónus para o Governo Regional da Madeira.
O que sabemos é que a Lei Geral Tributária obriga as instituições de crédito e as sociedades financeiras a comunicar à AT “as transferências e envio de fundos que tenham como destinatário entidade localizada em país, território ou região com regime de tributação privilegiada mais favorável.”
Sabemos que a Instrução n.º 17/2010 do Banco de Portugal obrigava as mesmas entidades a reportarem ao banco central as operações de transferência para jurisdições offshore. Sabemos que os bancos estão obrigados pela Diretiva Comunitária anti-branqueamento de capitais a identificarem os beneficiários efetivos das operações financeiras transfronteiriças. Sabemos ainda que o Boletim Estatístico do Banco de Portugal nos dados relativos ao Balanço e à Demonstração de Resultados agregados do sistema bancário, excluí as instituições com sede no offshore da Madeira.
Sabemos que o Despacho n.º 17024-A/2010, de 8 de novembro, assinado por Sérgio Vasques, então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, determina que a AT divulgue na sua página, até ao final do mês de outubro de cada ano, “informação estatística relativa às transferências financeiras que tenham como destinatário entidades localizadas em país, território ou região com regime de tributação privilegiada.” Não havendo despacho posterior que revogue o despacho de Sérgio Vasques ou lei habilitante que se sobreponha ao mesmo, o despacho de 2010 mantêm-se em vigor. Aliás, no mesmo documento, o secretário de Estado incumbe a AT de divulgar a lista nominal das entidades que usufruíram de benefícios fiscais na Zona Franca da Madeira. Essa lista tem sido divulgada, sempre fora de prazo e a pedido, após cartas enviadas aos sucessivos ministros das Finanças e algum ruído da imprensa.
Finalmente o que todos sabemos é que as entidades supervisoras e inspetivas não fazem o seu trabalho de casa e as estatísticas estão erradas. A empresa do multimilionário russo Oleg Derispaska chegou a faturar 3 mil milhões de euros no offshore da Madeira e passados três anos de sobrefaturação desapareceu sem deixar rasto, transferindo todo o dinheiro para outra empresa-fantasma sediada em Chipre.
Se fizermos contas percebemos que os números das estatísticas não batem certo e há pelo menos 12 mil milhões de euros fora da caixa. Se considerarmos os valores da receita reportada pela AT-RAM [Região Autónoma da Madeira], percebemos que as empresas do offshore da Madeira em 2015 pagaram 151 milhões de euros de IRC a uma taxa de 5%, sendo o seu lucro extrapolado superior a 3 mil milhões de euros. Considerando que nos anos de 2010 e 2011 as empresas do offshore da Madeira estavam isentas do pagamento de IRC e se olharmos para a lista das principais exportadoras, encontramos dados que nos mostram que o dinheiro que saiu para offshores provenientes da Zona Franca da Madeira é muito superior ao que está nas estatísticas oficiais da AT.
Não se pode acreditar em todas as estatísticas, da mesma forma que não se deve confiar em todas as pessoas. Afinal, é tudo uma questão de números.
(*) João Pedro Martins, Público

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