quinta-feira, 18 de maio de 2017

É SEMPRE ASSIM…


Com uma certa dose de ironia que uma situação destas reclama, o autor (*) do seguinte artigo de opinião que transcrevemos do Público desta quarta-feira aborda o processo criminal relativo à alegada ocultação da dívida pública levada a cabo pelo Governo Regional da Madeira, entre 2003 e 2010, em que um dos principais arguidos era Alberto João Jardim.
Para o comum dos cidadãos, já não é novidade nenhuma que processos judiciais deste tipo fiquem, como diz o povo, “em águas de bacalhau”, depois de investigações e mais investigações. É sempre assim, como não havia de ser desta vez, ainda por cima, envolvendo uma raposa matreira como o ainda poderoso ex-presidente do Governo Regional da Madeira… (os sublinhados são nossos)
Como se escrevia neste jornal, a propósito da investigação criminal e respectivo processo judicial sobre a “ocultação de dívida pública” pelo Governo Regional da Madeira entre 2003 e 2010, até terá sido apurada a existência de “software específico para as fazer desaparecer da contabilidade nacional”. “As” da frase em causa são facturas, bem entendido, facturas passadas por construtores civis e pagas pelo Governo Regional da Madeira, mas que afinal não existiam para o erário público.
Não haverá julgamento: a juíza de instrução criminal terá entendido não haver lugar a responsabilidade criminal dos arguidos em causa, designadamente de Alberto João Jardim. Mas mandou extrair certidões de conteúdos deste processo para o Ministério Público investigar... Investigar o que já investigou? Investigar o que mandou arquivar em 2014 nesta matéria? Ou, depreende-se da decisão judicial, investigar agora de forma acertada e capaz de conduzir a um julgamento? Recorde-se que, em Outubro de 2014, a Procuradoria-Geral da República decidiu-se pelo arquivamento deste inquérito, após mais de três anos de investigação, supostamente por falta de provas.
Note-se que estamos apenas a falar de 1,1 mil milhões de euros de dívida contraída pela Região Autónoma da Madeira e ocultada até ao limite, ou seja, até ter de ser “salva” financeiramente pela República em 2011. E estamos a falar de dívida ocultada de forma reconhecida, invocando frases públicas de Alberto João Jardim. Será que o valor em causa não justifica uma investigação adequada? Será que se receia a dimensão política dessa investigação? Será que perante a existência de software ao serviço de entidades públicas, cuja finalidade é reconhecidamente ocultar despesas públicas, persistem dúvidas sobre a finalidade que está em causa?
Pode haver uma explicação simples isto e que não causa escândalo. É necessário tomar em consideração que Alberto João Jardim também é doutor honoris causa pela Universidade de São Cirilo, de Malta – solidariedades insulares? –, uma universidade que ninguém reconhece como tal e que consegue ser provavelmente a única instituição de ensino que não indica qualquer curso oferecido no seu website ou sequer qualquer professor. Um país de fraca reputação académica e científica, como a Itália, experimentou até classificá-la como uma universidade “fictícia”.
Mas, recorde-se, no final da Idade Média, um doutor, em regra, apenas poderia ser julgado pela jurisdição especial universitária, conducente à jurisdição eclesiástica. Serão desta ordem as dúvidas do Ministério Público madeirense? Estará Alberto João Jardim prestes a ser julgado pelo direito canónico – ou até talvez já condenado ou eternamente absolvido - e ninguém o sabe? Afinal, como reportava a imprensa regional da época, João Jardim foi ungido como doutor honoris causa na cidade de Roma, em Fevereiro de 2003, curiosamente o momento inicial da investigação criminal sobre dívida oculta (seria deste voo e alojamento sapienciais a primeira factura?).
Tenho para mim que fazer aparecer túneis e coisas do género e fazer desaparecer das contas oficiais 1,1 mil milhões de euros, parecendo coisa divina, está bem no plano terreno, em que qualquer mortal compreende o que está em causa.
Mas voar para Roma, para se ajoelhar perante São Cirilo, o evangelizador dos eslavos, e receber um grau magno, exista ele ou não, não será um pouco demais?
Tudo isto permite também uma outra pista para a investigação a que agora o Ministério Público está obrigado. E se o tal software de ocultação de facturas o que faria, afinal, seria simplesmente colocá-las em alfabeto cirílico, grande obra devida àquele santo e que tomou o seu nome? Está explicada a injustiça! E estão finalmente explicadas as dificuldades do nosso bem latino Ministério Público! E naturalmente as alegrias do doutor Jardim e seus confrades.
(*) Miguel Romão, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Sem comentários:

Enviar um comentário