quinta-feira, 27 de julho de 2017

COERÊNCIA DO BLOCO: CONTRA SITUAÇÕES DE RACISMO VENHAM ELAS DE ONDE VIEREM…


É do conhecimento geral que para o PCP o Bloco de Esquerda é uma pedra no seu sapato. Isto não devia acontecer mas é uma realidade. Os comunistas não entendem que a sua votação pouco cresceria se o BE não existisse mas não é possível convence-los de que o seu raciocínio está errado. Vai daí, a sua aversão pelo Bloco não é menor que pela direita. E demonstram-no com alguma frequência como que para não deixarem dúvidas. Por exemplo, aquando da constituição da “geringonça” exigiram negociações separadas com o PS sabendo-se que isso enfraqueceria esta fórmula de Governo e daria trunfos á direita. Mas não se importaram. Para além disso, de vez em quando, lá espetam uma alfinetada no Bloco que, muito bem, não responde.
Deixando para trás as ditaduras e amigos pouco recomendáveis que o PCP, numa manifestação de incoerência defende com frequência, o recente episódio da recusa do presidente da Junta de Freguesia de Cabeça Gorda (gerida pela coligação CDU) em autorizar o enterro de um cidadão de etnia cigana no cemitério daquela freguesia constitui uma nódoa muito forte na história da luta do PCP contra a discriminação e racismo.
Por outro lado, o Bloco de Esquerda, demonstrando, mais uma vez, as suas posições contra situações de racismo, venham elas de onde vierem, apresentou, muito coerentemente, na Assembleia da República, “um voto de protesto condenando a atitude do presidente da Junta de Freguesia de Cabeça Gorda”. A reacção descabelada do PCP, através do seu deputado João Oliveira, não se fez sentir e é essa situação que serve de tema ao artigo de opinião que o antigo dirigente do Bloco, João Semedo assina no Público de hoje.
Fiquei surpreendido com o tom e a violência do ataque ao Bloco de Esquerda protagonizado pelo líder parlamentar do PCP, João Oliveira, no último plenário da Assembleia da República, a propósito de um voto de protesto apresentado pelo BE, condenando a atitude do presidente da Junta de Freguesia de Cabeça Gorda (Beja), por este não ter autorizado o enterro de José António Gaspar Garcia, um cidadão de etnia cigana, no cemitério daquela freguesia. João Oliveira acusou o Bloco de “mentiras, deturpação e falsificação”.
Estranhei, sim, apesar de não desconhecer a tensão que os comunistas, muitas vezes, colocam na sua relação com o Bloco. Mas foi evidente que tanta agressividade pretendia esconder a fragilidade dos argumentos a que João Oliveira recorreu para tornear, iludir e redesenhar a realidade dos factos. Motivado pela estranheza, informei-me com detalhe, li tudo o que foi publicado e tudo o que escreveram ou disseram os envolvidos.
João Oliveira, num tom exaltado, repetiu ipsis verbis a argumentação que constava do esclarecimento enviado pelo presidente da junta de freguesia à Assembleia, na véspera do debate parlamentar, mais precisamente às 20h21min! Registo que esta informação — 18 dias depois do sucedido — constitui a primeira e única posição pública do presidente da junta de freguesia, o advogado Álvaro Nobre, apesar da dimensão pública e mediática adquirida pelo caso.
Como se defende o presidente da junta e como defende João Oliveira o presidente da junta? Dizendo que o cidadão José Garcia não cumpria o regulamento do cemitério que restringe o direito a ser ali enterrado aos “falecidos, naturais ou residentes na área da freguesia”.
Contudo, salta à vista que nem uma só vez Álvaro Nobre escreve ou João Oliveira diz, explicitamente, que José Garcia não residia em Cabeça Gorda, ideia que sugerem e insinuam mas nunca afirmam. Percebe-se porquê, essa é a questão central e sobre ela receiam ser desmentidos: José Garcia estava recenseado e residia em Cabeça Gorda, com afirma a família e garante a Associação dos Mediadores Ciganos.
Pergunto: por que não foram ver nem falam no recenseamento? Será que se pode confiar menos no recenseamento da junta do que na informação prestada pela agência funerária e usada como justificação por Álvaro Nobre, segundo a qual José Garcia residia em Pias?
Dizem João Oliveira e o presidente da junta de freguesia que não há, na junta, qualquer registo de que José Garcia tenha recorrido aos apoios sociais ali prestados. Mas desde quando é que os fregueses têm a obrigação de recorrer aos serviços da sua junta? E não existindo essa obrigação, como pode concluir-se que o cidadão José Garcia não residia em Cabeça Gorda?
O presidente da junta e, também, João Oliveira sabem onde José Garcia nasceu (Mértola), onde morreu (Moura, no centro de saúde) e, até, onde tinha uma casa arrendada (Pias). Mas não sabem, numa freguesia que tem 1380 habitantes, que aquele cidadão aí residia há cerca de dois anos.
Por último, o que Álvaro Nobre e João Oliveira não dizem e, aliás, escondem. O regulamento do cemitério de Cabeça Gorda é muito claro: permite enterrar pessoas de fora da área da freguesia “mediante autorização do presidente da junta de freguesia”. Portanto, o presidente podia ter autorizado mas não autorizou. Se podia, por que não autorizou? Este é o ponto.
Atitude bem diferente teve o presidente da Junta de Salvada e Quintos — também eleito pela CDU —, onde José Garcia acabou por ser enterrado, certamente desrespeitando o regulamento do respectivo cemitério. Será que Álvaro Nobre e João Oliveira vão apresentar queixa contra o seu camarada por violação do regulamento?
Há certamente comunistas que batem nas suas companheiras como, muito provavelmente, há em todos os partidos. E como é evidente isso não belisca nem diminui o papel do PCP no combate à violência doméstica. O que se passou em Cabeça Gorda não autoriza ninguém a acusar o PCP de racismo e discriminação contra a comunidade cigana, nem era isso que estava em discussão no Parlamento. O que se discutia era a decisão do presidente da Junta de Cabeça Gorda de recusar o enterro de um cidadão cigano quando até o regulamento lhe permitia decidir o contrário.
As palavras de João Oliveira, desculpando um comportamento indesculpável e justificando o injustificável, colidem frontalmente com a tradição e os pergaminhos do PCP na luta contra o racismo e a discriminação. O impulso para zurzir no Bloco falou mais alto na consciência de João Oliveira, nem que para isso tenha precisado de proteger e branquear uma atitude condenável. Sobre mentiras, deturpação e falsificação, estamos conversados.

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